domingo, 13 de novembro de 2011

Leituras e reflexões: Perdidamente

Na minha saga pela literatura portuguesa, fiz uma escolha muito suspeita. Estávamos nas nossas andanças entre os livros na loja  Leya no Centro Comercial Glicínias, uma rede de livrarias muito simpática que oferece todo tipo de livro com preços até simpáticos também, e cutucando nas estantes da literatura lusófona, deparei-me com essa obra não minha conhecida de Florbela. Essa poetisa me acompanha há tempos. A primeira vez que me encontrei com a sua obra nos versos musicados por Fagner, que Tony me mostrou, lá nos primórdios da nossa relação. Nessa época, conheci Giane Florentino, através de Breno Fittipaldi, conhecedora da obra de Florbela. Juntos, fizemos um recital de poesias de Florbela e Cecília, sonorizados com músicas de Maria Bethania, lá na UPE. Boas memórias.

Os anos passaram, e, acho que em 1996, Mahria me deu uma pequena antologia sobre a obra da autora. No mesmo ano, Ilma me deu um volume com "O Livro de Mágoas", "O Livro de Sóror Saudade" e o póstumo "Charneca em Flor". E esse livro tem uma historinha engraçada. Andou comigo pelas ruas do Recife quando eu não sabia que caminho seguir na vida. No V Festival de Inverno de Garanhuns, recebemos Fagner como atração principal na Guadalajara. Tony, trabalhava na Secretaria de Turismo, estava no Palco. A assessoria de Fagner era chatíssima, disse que ele não queria falar com ninguém. Beto Duran, desesperado, queria uma entrevista, já lamentava oportunidade perdida. Tony sacou o livro e mostrou os poemas ao radialista. O menino prometeu que seria apenas uma pergunta: "Fanatismo, Frieza e Fumo são poemas de Florbela, musicados por Fagner. Já Percebeu a concidência de "F"? O cantor parou e ficou olhando o reporter fixamente e respondeu: "É foda!" E a entrevista durou quase meia hora, e rendeu dois autógrafos no nosso livro, que agora é jóia de família.

Pois, o meu caso com Florbela continuou, e migrou comigo para Portugal, a terra da qual ela nunca se ausentou. Perdidamente é um livro diferente: trata da correspondência amorosa da autora com Antonio Guimarães, aquele que foi seu segundo marido, e após a leitura, entendemos que foi o homem da vida de Bela. As cartas, cartões e bilhetes foram escritos no período de 1920-1925, organizados por Maria Lúcia Dal Farra, professora brasileira, a maior autoridade na obra da autora, e, com um excelente prefácio de Inês Pedrosa. Através destes escritos Florbela se dá a conhecer, não somente da principal poetisa da língua portuguesa, mas como uma mulher deslocada na época em que viveu, livre no pensamento, mas massacrada pela sociedade portuguesa conservadora da primeira metade do século passado. Para além de reconhecer a trajetória de criação da obrada autora, mostra a mulher envolvida na criação de suas galinhas e nos cuidados da casa, na constante luta pela sobrevivência financeira. Delineia uma mulher apaixonada, daquelas que dá apelidos ridiculamente carinhosos ao amado. Perdida em dúvidas, confusões e depressões. Igual a qualquer uma de nós.

Imaginem em Portugal, país católico e conservador da década de 1920, uma rapariga recém separada do primeiro marido inscrever-se na Faculdade de Direito de Lisboa. Seus colegas, quase todos homens. Dal Farra destaca um aspecto particularmente interessante: "a poetisa era elegante, atraente, inteligente e culta, e devia mostrar-se muito independente. Além do mais, contava ela (como poderosa arma!) com o seu célebre desdém, o seu 'tal terrível desdém', capaz de 'acabar com o mundo' "(p. 35) Engraçado, esse mesmo terrível desdém já vi estampado em alguns olhares, foi o mesmo que classifiquei como "frieza estéril". Depois da leitura desse livro, percebi que é um modo que algumas pessoas daqui escolhem para se proteger do risco de gostar, de se afeiçoar a alguém.

A vida de Florbela é, nesse livro, costurada pelo amor. Como não é uma biografia, não há alegorias criadas para tornar o cotidiano mais ou menos emocionante. As cartas são pontuadas pela organizadora e alinhavados aos poemas, frutos daqueles momentos. Desconfio até que o tão falado amor incestuoso que ela mantinha por Apeles, o seu único irmão, não passava de uma projeção de um desejo de liberdade que ela não tinha. Era uma alma que sofria muito, aprisionada num mundo de preconceitos e regras.

A história não tem final feliz, pois esses são privilégios do cinema. Diz o último poema da relação:

Supremo Orgulho

Quanta mulher no teu passado! Quanta!
Quanta sombra em redor! Mas que me importa
Se te trouxeram sonho que conforta
A sua vinda foi três vezes santa!

Erva do chão que a mão de Deus levanta
Folhas murchas de rojo à tua porta...
E quanto eu for uma pobre coisa morta
Quanta mulher ainda! Quanta! Quanta!

Mas eu sou a manhã: apago as estrelas
Hás-de ver-me, beijar-me em todas elas
Mesmo na boca da que for mais linda!

E quando a derradeira, enfim, vier
Nesse corpo vibrante de mulher
Será o meu que hás-de encontrar ainda! 

Foi escrito a 8/2/1924. Pode parecer praga, mas, boa parte dos documentos que foram utilizados na construção do livro faziam parte do espólio de Antonio Guimarães. Ele passou a vida a colecionar retalhos da mulher que não soube amar.

É um livro maravilhoso, verdadeiro.

Té manhã, fiquem com Deus.




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