domingo, 15 de janeiro de 2012

Leituras e reflexões: Cartas para além da vida



Todas as semanas recebemos um jornalzinho de ofertas de uma rede de supermercados alemã. Numa das edições veio a divulgação da ultima obra de Isabel Allende, "O livro de Maya". A matéria trazia uma entrevista com a autora, que falava sobre os seus rituais de escrita para produzir um novo romance. A uma certa altura da entrevista, foi questionada sobre as cartas que trocou com a mãe, que morava algures na Europa. Allende revelou que trocava cartas diárias com a mãe durante anos a fio. Contudo, jamais iria permitir a publicação dessas cartas, pois prometeu solenemente à mãe que não o faria. Uma pena, pois, fiquei morta de curiosidade para entrar no cotidiano de mãe e filha. Daria um excelente livro, eu o leria, com certeza.

Pus-me a pensar nas cartas. Não me lembro de ter recebido cartas. Acho que nunca as recebi... Uma conversa com Tony Neto me fez lembrar que recebi cartas de papel endereçadas a mim e enviadas pelo correio de duas meninas de Curitiba e uma de Salvador, de quem não,  me lembro os nomes. Correspondíamos-nos por sermos fãs do Menudo. Imaginem quanto tempo faz isso! Para fazer justiça, recebi cartas de Edna, da época que morava no Amapá nos mandava cartas gordas recheadas de recortes e lembrancinhas. E as cartas de Ilma, logo que mudou-se para trabalhar no Paulista. Chegavam cartas lindas, cheias de desenhos e pinturas. É, pensando bem, já recebi muitas cartas de  papel e sei a delícia que é ir atender ao rapaz que grita ao portão "Correio" para entregar algo além de contas e publicidade. Isso a maravilhosa internet roubou-nos. Paga-se sempre o preço por tudo. 

Pois, acho mesmo que foi esta história das cartas que, ao chegar à Biblioteca da Universidade de Aveiro, o meu olhar foi atraído pelo título do livro amarelado com cara de muito tempo de estante. Além disso, já havia colocado na ideia de ler uma obra feminina. Nunca havia ouvido falar em Fernanda de Castro, mas, que mulher maravilhosa essa obra me deu o prazer de conhecer!

Cartas para além do tempo é um livro repleto de sabedoria, Fernanda de Castro o escreveu aos 90 anos. A obra é um conjunto de cartas endereçadas às gentes de sua convivência, a maioria já falecidas. Pessoas da família e de sua infância: tios, tias, irmãos, primos, sobrinhos, testemunhas de sua formação pessoal e profissional. Numa dessas conversas com o sobrinho, concluiu que "As pessoas raramente nos perdoam obem que lhes fazemos" (p. 121). A sensibilidade e a sabedoria de Fernanda de Castro nos explica com simplicidade o porquê de algumas pessoas com quem temos tanto cuidado acabam tomando atitudes que  nos magoa.  Também figuram artistas, pintores, escritores que frequentavam sua casa e eventos sociais que marcaram a sua vida em comum com António  Queiroz, casamento para vida inteira, a quem a autora dedica a carta que finaliza o livro. Há também figuras conhecidas como Cecília Meireles e Carlos Drumond de Andrade, poetas brasileiros com que conviveu  e cultivou uma longa amizade. Surpreendente saber que a vida de Cecília Meirelles não era propriamente o mar de rosa como idealizamos o dia-a-dia dos poetas. A vida não pouparam-lhes os espinhos também. Neste livro soube de uma Cecília batalhadora para sustentar as duas filhas e cuidar da longa doença do primeiro marido. Dedica cartas a pessoas simples, do povo e até mesmo desconhecidas, como o homem que tocava violino à frente de sua casa na Calçada dos Caetanos.

O ritmo de produção de sua obra é realmente impressionante. Fui procurar na internet - http://fernanda-decastro.blogspot.com/  -  e achei essa listinha:

• Náufragos (1920) (teatro)


• Maria da Lua (1945) (romance)

• Antemanhã (1919) (poesia)

• Náufragos e Fim da Memória (poesia)

• O Veneno do Sol e Sorte (1928) (ficção)

• As aventuras de Mariazinha (literatura infantil)

• Mariazinha em África (1926) (literatura infantil) (fruto da passagem da escritora pela Guiné Portuguesa)

• A Princesa dos Sete Castelos (1935) (literatura infantil)

• As Novas Aventuras de Mariazinha (1935) (literatura infantil)

• Asa no Espaço (1955) (poesia)

• Poesia I e II (1969) (poesia)

• Urgente (1989) (poesia)

• Fontebela (1973)

• Ao Fim da Memória “(Memórias 1906 – 1939)" (1986)

• Pedra no Lago (teatro)

• Exílio (1952)

• África Raiz (1966).

• Tudo É Príncípio

• Os Cães não Mordem

• Jardim (1928)

• A Pedra no Lago (1943)

• Asa no Espaço (poesia)

• Cartas a um Poeta (tradução de Rainer Maria Rilke)

• O Diário (tradução de Katherine Mansfield)

• Verdade Para Cada Um (tradução de Pirandello)

• O Novo Inquilino (tradução de Ionesco)

Além disso, bordava em araiolo, cozinhava muito bem, editou revistas e colaborou com jornais. Criou filhos, cuidou de jardins. Tinha muitos amigos, era feliz. Em carta a Maurice Maeterlink, Fernanda de Castro reflete sobre o tempo: "A mim, querido amigo, 'ce n'est pas le génie qui me travaille.' É uma questão de prudência, de sabedoria. Tenho de matar o tempo enquanto o tempo não me mata a mim. "(p.91) E eu fico a pensar onde eu estava que não conhecia uma mulher fantástica como essa. Uma mulher que merece ter um jardim em Lisboa com o seu nome.
 
Té manhã,
fiquem com Deus.
 

2 comentários:

  1. Cartas de amor, cartas de suicida, cartas de demissão. Todas as cartas são importantes, pena que perderam o interesse nelas. Eu prefiro recebê-las em papel, que ainda vem com um resto do perfume de quem as escreveu. Adorei sua crônica de hoje, linda e emocionante como sempre. Beijos e saudades.

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