sábado, 1 de junho de 2013

Leituras e reflexões: A Confissão da Leoa

Já começa o nosso último mês de residência em terras lusitanas. Preciso iniciar as arrumações para a mudança. Sempre gostei de mudanças, apesar da desordem e da trabalheira. E nessa minha vida, eu já me mudei bastante. Até hoje são 18 endereços! 16 em Garanhuns e 2 em Portugal. E na lista não incluí os hoteis que morei no litoral pernambucano, nem os períodos que fiquei na casa de Rita, Edna e Vilma, no Recife, que me acolheram com tanta generosidade em suas casas e suas famílias. Inicialmente, as mudanças eram impulsionadas pela necessidade. Quem vive de aluguel sabe que um dia é cá, outro, não se sabe. E a nossa casa própria só aconteceu no nosso 15º endereço. Depois, mudei-me em busca de trabalho. Mesmo na educação, Garanhuns nunca foi fácil para se estabelecer como profissional, tanto é que só consegui um trabalho na cidade em que nasci já na quarta experiência profissional. E, nesta terceira etapa, a busca é pela formação. Viemos para Portugal há dois anos e meio atrás para estudar, um verdadeiro luxo para quem é professor. Ficamos eu e Ana Luiza a tempo inteiro e agora é hora de juntar as coisas e voltar. A parte boa das mudanças é que sempre encontramos algum objeto perdido, um livro bem guardado, um brinco que escorregou entre as gavetas e que guardávamos com apego uma única peça do par, mesmo sem esperança de encontrar o outro. É também oportunidade de doar objetos que ainda permite o uso ou destinar papéis e outros artefactos para a reciclagem. Cá não se usa a expressão "jogar no mato".
 
Mas, ainda há muito a fazer. Ainda não terminei as primeiras correções. Como o senhor Doutor Orientador é muito compreensivo, aceitou receber os capítulos "de mercado", como diria minha mãe. Assim, no começo de janeiro, entreguei o referencial teórico, em fevereiro a metodologia. Em abril, um pedaço dos resultados. Então, agora, depois que fechei a análise dos dados e a textualização dos resultados, voltei para fazer correções. Percebi que a tese assemelhava-se com uma casinha de pau-a-pique, cheia de arestas para completar. Trabalhando de 8 a 10 horas por dia, consegui melhorar a construção, que agora está parecendo, digamos, uma casa de Cohab sem reforma. Ainda falta muito. Mas, estamos no caminho para deixar essa primeira versão para correção. Não posso levar esse peso na minha bagagem. Até porque quando voltar, vai desabar sobre mim "o Carmo e a Trindade" com uma readaptação ao cotidiano brasileiro. Mas, isso é preocupação para depois.
 
Então, estava corrigindo a metodologia da tese e reencontrei um velho conhecido científico e metodológico. Fui rever um trecho do livro "Os Argonautas do Pacífico Sul", um clássico da etnologia do Malinowski,  e, encontrei um trecho com que me identifiquei muito. A certa altura, para descrever as estratégias de recolha de dados através da etnografia, o autor diz: "Atravessei períodos de desanimo, alturas em que me refugiava  na leitura de romances, tal como um homem levado a beber numa crise de depressão e tédio tropical" (p. 19). Pois, apesar de não estar deprimida, a leitura de lazer, como classifica Isabel Alarcão, continua sendo para mim um remédio. Percebo que as minhas palavras andam gastas, rotas como roupas muito usadas e muito lavadas. Para esse mal, o único remédio é a leitura.
 
Na livraria, no final do ano, discutíamos para decidir entre Mia Couto ou José Eduardo Agualusa. A contracapa de  "A Confissão da leoa" ganhou a disputa. Estava escrito "Tristeza não é chorar. Tristeza é não ter para quem chorar." Saímos da livraria com o livro novo do moçambicano Mia Couto, debaixo do braço. Antes de entrar na mala e virar prenda para Nivaldo Tenório, lemos o livro os dois, com a desculpa de que se fosse ruim, o amigo-escritor não receberia um mau presente. Quando Tony deixava o livro, eu pegava e assim, consumimos os dois juntos, no inverno europeu, a obra ambientada nas savanas africanas. A conversa é interessante: um jornalista branco é convidado a acompanhar a caçada a um leão que aterroriza uma comunidade pobre no interior. Através da publicação de um edital, foi selecionado um caçador experiente - na verdade, o último caçador de leões. A documentação desta empreitada arriscada é o pano de fundo para o diálogo do jornalista-escritor com as mulheres da aldeia. O ambiente de domínio feminino são as cozinhas e os quintais, de forma que para vê-las e ouvi-las é necessário ser íntimo da casa. Lugar de visita é na sala, com bico de luz aceso e poltronas lustrosas, nunca usadas pelos habitantes da casa. Aos pouco, o visitante faz-se parte do dia-a-dia da casa. Etnograficamente, o jornalista consegue extrair pérolas da sabedoria africana da mãe de Mariamar. Massacradas pelo sistema social, as mulheres se reconhecem como mantenedoras de seu próprio cativeiro: "A minha mãe costumava dizer que a água arredonda as pedras como a mulher molda a alma dos homens" (p. 60-61). O que decorre nas camarinhas reflete nas cozinhas e nos quintais, onde o trabalho é incessante. Todo dia é dia das mesmas tarefas, de fazer tudo do mesmo jeito que as mães, as avós, as bisavós... e correr os mesmos perigos de serem devoradas pelos leões famintos às bermas da aldeia nas noites escuras, ou atacadas pelo genitor na crueza do incesto. Um provérbio africano traduz com beleza o dificil cotidiano da aldeia:
 
"Todas as manhãs a gazela acorda sabendo que tem que correr mais veloz que o leão ou será morta. Todas as manhãs o leão acorda sabendo que deve correr mais rápido que a gazela ou morrerá de fome, Não importa se és um leão ou uma gazela: quando o sol desponta, o melhor é começares a correr." (p. 87)   
 
É preciso mexer-se para não ser confundido com as pedras do caminho, sob o risco de virar pó da estrada. Neste ambiente que sempre foi assim desde tempos imemoriais, cada um "corre" do jeito que pode: seja pela força das armas, seja nos feitiços que transmutam seres humanos em animais. A leoa sempre defenderá sua cria.
 
Li o livro. A cada capítulo reconstituía-me as palavras desgastadas pelo uso excessivo em longos (intermináveis) textos científicos. E em cada gota da sabedoria africana, tão familiares aos meus olhos nordestinos,  me lembrava mais de minha amiga e para sempre professora Eliane Vilar, cuja vida a impeliu para o ativismo na igualdade de gênero. Entre mudanças e incertezas, a mãe de Mariamar certamente lhe diria: "A felicidade consiste num fazer nada: ser-se feliz é apenas deixar Deus acontecer." (p. 101)
 
Não sei se feitiço ou por remédio, o efeito terapêutico da literatura me impulsiona com força para iniciar a etapa final.
 
Até amanhã, fiquem com Deus.
   
  




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