domingo, 5 de outubro de 2014

A prova

"Não há ninguém que me derrote.
Afogado ou flutuante, hei-de chegar."

Vitorino Nemésio


Pronto, então, a segunda feira chegou. E com ela, a prova. Já pela manhã sentia um gosto de pânico na boca. Nada que as pastilhas de hortelã não ajudassem a disfarçar. Alguns cumprimentos à porta do departamento, uma apresentação teste para o orientador. Correções de última hora, feitas apressadamente. Faltavam quinze para as duas quando terminei. O almoço, nem tentei. Me conheço o suficiente para saber que nada passaria na passagem estreita de minha garganta. Comigo, só a pancada surda do meu coração e o imenso desejo de correr. 

Aos poucos, os avaliadores foram chegando. Um juri numeroso, até exagerado. Mas, não reclamei. Só esperava que o que foi feito fosse suficiente para todos. Que não faltasse um pedaço de mim para ninguém. Quando vamos para as provas públicas do doutoramento, a expectativa é sempre da carnificina. É sempre uma equipe altamente qualificada (no meu caso, era "peso pesado", segundo a Profa. Maria João), a esquadrinhar as fragilidades da proposta de um candidato (é assim que lhe tratam, ou seja, o doutorando é um 'zé' em busca de um milagre). Uma mulher vestida de preto, com uma jovem e um guarda-chuvas, num dia de sol. Um homem grisalho, alto, muito alto. Um senhor sério, de nenhum sorriso. Uma senhora elegante, com um enfado da imensa qualificação científica. Uma senhora animada e grandes brincos. Um senhor bronzeado e largo sorriso. Meus orientadores. Umas três ou quatro pessoas para ver. E eu. Um metro e meio de aflição, mãos geladas. E um imenso desejo de correr.

O senhor mais alto abriu a sessão, com formalidades. Passou-me a palavra, e mais uma vez, olhei para a porta. Já não era possível correr. Ouvi minha voz surpreendentemente calma. Terminei com a maior mentira do século: "Estou pronta para os questionamentos". Cruzei os dedos às costas e pedi perdão a Deus, pois essa foi a única mentira que contei. Num tribunal daquele, mentir é o risco maior: quem fala a verdade não se perde. A professora começou surpreendendo-me a sacudir um exemplar de Rubem Alves na minha frente. Uma mulher apaixonada por uma literatura periférica. Todos sabemos que na academia brasileira, Rubem Alves é considerado perfumaria. Eu, como discordo de muita coisa e odeio que me digam do que gostar, já simpatizei com a professora, pois aprecio o autor. Simpatias à parte, consegui anotar 17 perguntas em seu discurso de metralhadora. Faria ainda mais, se o senhor mais alto não advertisse sobre o tempo. Se respondi, não sei. Esta parte se perdeu da na névoa do meu nervosismo. Era a vez do segundo avaliador. Como estávamos mais próximos, consegui visualizar uma página inteira rabiscada à grafite. Uma imensa lista de observações. Tudo aquilo, que eu não conseguia ler, me parecia uma sentença criptografada. Metódico, o sujeito ainda ligou cronômetro do telemóvel e perguntou-me se eu queria responder-lhe as perguntas à medida que as formulasse. Deixei à vontade, enquanto pensava numa fração de segundo: "O sujeito é metódico até mais da metade, e esse sorriso não me engana. Me lasquei." Para completar, por artes do destino, tínhamos versões impressas diferentes (aquela história de mandar seis volumes e depois mandar mais dois, deu nisso!). Houve um momento que tive que pedir a versão de Francislê, que estava sentado ao meu lado, para responder alguma coisa. Da arguição, só me lembro do dedo indicador do professor percorrendo as anotações e fazendo opções, num misterioso "jogo de isso sim, isso não..." 

Os três professores comentaram aspectos frágeis da tese, com os quais concordei, justifiquei, exemplifiquei, expliquei. No final, foi menos mau do que eu imaginava. Mandaram-me sair para que pudessem discutir o veredicto. Aproveitei para beber água, trazia o sertão em minha boca. Quando chamaram-me novamente à sala, estavam oito pessoas em negras roupas solenes, em pé, no meio da sala. Parei à três passos da porta, avaliando pela terceira vez as minhas possibilidades de sair em desabalada carreira. O Presidente do juri a leu a sentença: aprovação por unanimidade. O que se seguiu depois também não me lembro. Abraços, beijos, cumprimentos. Algumas palavras de encorajamento. Mas ficou tudo muito misturado. Só me lembro de abraços. Fotos. Alívio. 

Durante meses tive esta lista de pessoas num papel, documento homologado pela Reitoria da UA. Mas, eu sou tão desorientada, que nem procurei saber quem eram. Quando disse isso a Francislê, ele olhou-me como se eu fosse um ser de outro planeta. Quando um juri é homologado, o candidato (normal) corre para ver o currículo dos avaliadores, principalmente dos arguidores. Os mais prevenidos procuram também os artigos que as criaturas publicaram para conhecer a linha de pensamento do investigador, suas práticas, suas orientações filosóficas. Eu, fui desarmada. Não procurei nada sobre ninguém. Sabia que todos eram muito bons, mas não quis detalhes sobre o grau de "bondade" de ninguém. Era apenas uma lista de nomes num papel. Somente depois do exame é que fui procurar. E gostei do que encontrei. Só lamento ter passado tanto tempo nesse país e estas pessoas só terem entrado na minha vida agora que já estou de partida. E desta forma devastadora, parecem furacões. Mas, como para tudo há jeito, espero que (mesmo devastadores) fiquem. Como no livro de Florbela: "Eu quero. E tu?"

Enquanto corria atrás dos papeis, dando conta da versão final da tese, já com as correções do juri, parei para ver os calouros na praxe. Quando chegam a Aveiro, os novos alunos são recebidos pelos veteranos, que planejam toda sorte de atividades para submeter as inocentes criaturas. Nesse momento, me vi saindo da Universidade de Aveiro. Mas, aprendi o caminho. Dessa vez, ficarei até a semana que vem para ver se consigo levar os documentos e não deixar pendências. Estou me despedindo do Porto e a semana que vem, Lisboa. Até porque ainda há uma batalha em terras brasileiras: a revalidação do título. Mas, essa é uma outra história.

Feliz por tudo isso.

Até amanhã, fiquem com Deus.

OBS: Vitorino Memésio é um poeta açoriano. Esse verso, vi-o ao acaso, num livro que abri aleatoriamente na Lello Livraria, no Porto. Não comprei o livro, mas anotei o verso, pois naquela hora, o autor  falou para mim.

3 comentários:

  1. Claro que nunca fiz doutoramento, mas tenho um gostinho do que vem a ser nas duas Pós que fiz. Sei muito o que é o "gosto do pânico" ou o "Sertão na boca", sei tbém o caso da mentira que todos nós falamos a nos considerar e declarar "pronto para as perguntas" dos nossos avaliadores, claro que n estamos nunca prontos... Impossível n suar as mãos, ou tremelicar das pernas, sem falar da gagueira ou , pior , o branco total radiante, que às vezes dá. A primeira batalha é vencida na volta para o "veredicto", mas sim , ainda há na cabeça a ideia de desaparecer dalí. Mas precisamos ficar e enfrentar, e o alívio total é quando termina bem, parece que tiramos uma bigorna das costas, e realmente n dá para se lembrar de muita coisa mesmo. Depois, aos poucos vem...O que importa é que "è finito", como dizem os itallianos, e que acabou tudo bem, o resto é o de menos. Parabéns, minha irmã vc bem o merece, batalhou demais prá isso. E que venha o Pós-Doc, já que se está na chuva.

    ResponderExcluir
  2. Na minha defesa so fiquei com um poco de aflicao antes de comecar a apresentacao. Na arguicao fui tranquila e olha que nossa defesa demora crca de 5 horas. Parabens
    Corra para revalidar p titulo eh muito chato fazer isso

    ResponderExcluir
  3. Querida mestra, muito feliz por você. Em nenhum momento duvidei de sua capacidade de tirar isso de letra. Parabéns! Título adquirido por direito e mérito. Você merece... Bjs!!!

    ResponderExcluir