terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Então, é natal!

Então, é natal. Em novembro estivemos  em Salvador. Num passeio por Ondina, vi numa banca de jornal uma publicação local, cuja manchete dizia que funcionários de um shopping da capital baiana entraram na justiça para impedir que o centro de compras executassem a versão brasileira da música "Happy Xmas (war is over)", do mito John Lennon (1983). Gravada pela cantora baiana em  1995, todos os anos a famigerada canção sai do fundo dos baus das músicas de natal e são executadas à exaustão nos espaços públicos brasileiros. De supermercados à farmácias, até mesmo nas ruas, como em Garanhuns, que dispõe dum serviço de som em via pública, a canção caiu no desgosto popular. Alguns sites publicaram que há uma decisão do STF proibindo a execução nos shoppings. Pode ser um mito urbano, mas que a música é chata, lá isso é verdade. Para nós, consumidores, que podemos entrar e sair da loja na hora que nos apetecer, a canção já é torturante, imaginem para quem tem uma carga horária obrigatória de oito ou mais horas, num tumulto de últimas compras, sob um calor desgraçado, com a Simone gritando "então bom nataaaal, bom ano novo tambééém, que seja feliz quem souber querer bem". Haja paciência.  É uma prova de fogo para qualquer espírito de natal.


O natal tropical é mesmo bizarro. Os bonecos de neve, confeccionados com muita lã de vidro (recheio dos edredons) enfeitam as praças sob um calor de quase 30 graus. Já fui contra, mas hoje acho bem bonitinho. O natal de Garanhuns ficou muito bem feitinho e arrumado. O relógio das flores parece uma casa de bonecas. Chegavam os de viagem quando vimos a ornamentação sendo construída sob o sol quente da tarde. Ao avistar os soldadinhos de chumbo tamanho gigante, Luiza exclamou: "Mãe, é o quebra nozes!" Fiquei orgulhosíssima, pois enquanto os sabichões da internet perguntavam-se se eram os 'bonecos de Olinda', minha pequena reconheceu à primeira vista o personagem do balé de Tchaikovsky. E viva a Barbie e sua divulgação da cultura mundial, que faz as crianças perceberem muito mais de arte que muito adulto já profissionalizado.




A proposta foi muito bem executada e as praças centrais da cidade reluzem nas noites mornas, cheias de fantasia. Apesar das últimas chuvas, que neste verão chegaram mais cedo, acertaram em cheio na escolha e na execução. O que não aprecio muito é o som na Avenida Santo Antonio, principal via comercial da nossa cidade. O calor, o trânsito impossível, a cidade travada pelo tráfego,  pelos motoristas pouco inteligentes e pelos transeuntes pouco educados, fazem da "rua" (como chamamos esta via comercial) uma visão do inferno. Nos sábados comuns já é muito difícil arranjar um lugar para estacionar, em véspera de feriado é impossível. Para agravar a situação, foram instaladas caixinhas de som no alto dos postes a executar músicas natalinas ao ritmo de pagode. Outro dia, fui comprar sapatos com Ana Luiza. Nada mais natalino no interior do que comprar sapatos nesta época. Enquanto escolhíamos os pares, Roberto Carlos se esgoelava pelas caixinhas, num som de baixa qualidade. Impossível não recordar a minha tragédia pessoal natalina. Agora, vou publicar.

Quando éramos crianças, éramos bem pobres. A situação financeira não era das mais fáceis no Brasil, vivíamos a década perdida, os anos 1980. Para agravar, nosso pai desencarnou muito cedo, deixando mamãe com sete filhas, das quais eu sou a mais nova.  De qualquer forma, pobre ou rico, era costume no interior a roupa nova e o sapato novo (geralmente muito maior que o pé) no final do ano. Naquela época, armava-se um parque de diversões na Avenida Santo Antonio, e nós, juntávamos dinheiro o ano inteiro para ir ao parque. As canoas,   os patinhos, o carrossel, a roda gigante. Rodávamos com prazer naquelas geringonças  mal conservadas e repletas de gambiarras, vestidas nas nossas roupas novas. Comíamos nossos lanches: seriguelas, algodão doce, maçã do amor (horríveis!), pipocas e cachorros quentes gordurosos. Era uma festa. Neste ano, em que vivi minha tragédia pessoal, tínhamos vestidos à marinheira. O meu era azul e branco o de Vilma, vermelho e branco. Iguaizinhos. Ilma era o adulto responsável que levava a meninada ao parque. Neste ano, não sei porquê, fomos à noite. O horário tornava o passeio ainda mais especial, as luzes, a música, o vai-e-vem de pessoas excessivamente perfumadas e com pés apertados em sapatos novos. Antes de ir, tomei uma sopa de letrinhas, estava uma delícia. Rodei no patinho, na  canoa e no chapéu mexicano. E depois, chupei um pacote imenso de seriguelas (fruta tipicamente pernambucana). E toda serelepe, fui para a roda gigante. Na segunda volta do brinquedo, o meu estômago dava voltas. Disse a Ilma que estava para morrer, que queria sair. Ela remediou: "vamos cantar bem alto, que o enjoo passa!" Me lembro até da música: "Cama e mesa", de Roberto Carlos (1981). E o meu estômago não acalmava. Para piorar, o homenzinho que controlava a roda gigante simplesmente esqueceu-se de nós. Continuamos rodando, e o meu estômago também.  Quando eu já estava quase em coma, e a roda gigante alcançava as alturas pela vigésima vez, vomitei. Com o brinquedo em movimento, o conteúdo do meu sofrido estômago foi democraticamente distribuído pelo povo que estava lá em baixo, excessivamente perfumados e bem penteados. Quando enfim o homenzinho percebeu que havia algo fora do normal, parou e desci cambaleando, rebocada por Ilma e por Nena (que hoje é Rose), mais morta do que viva. A mulher da bilheteria estava nos cascos, com golfadas de sopa e seriguela pelo cabelo cumprido e escovado e pelo casaco de veludo preto. Como eu vinha em prantos, a mulher ainda perguntou: "Jogaram na bichinha também foi?" Ilma, desconfiadíssima, acabou confirmando, e de vilã, passei a vítima, e saímos rapidinho, antes que a mulher percebesse que, pelas leis da física,era impossível que eu tivesse sido atingida também sem ser a autora do atentado. 

Passei muito tempo envergonhada. Quem quisesse ser meu amigo, não citasse o ocorrido. Passei anos sem chegar nem perto de um parque de diversões, fiquei velha aos oito anos. Depois, a tragédia vira comédia, e todos os anos a história vem à tona. Se o quebra nozes é um conto de natal, minha tragédia infantil é sempre relembrada como um mito. Faz parte nas nossas histórias de família de natal. Relembrar com galhofa estes e muitos outros infortúnios é uma de nossas mais deliciosas tradições de natal.

Feliz natal para vocês. E até amanhã.

Fiquem com Deus.

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