terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Leituras e reflexões: Catálogo de Sombras

De meu país, sinto imensa falta das frutas. Outro dia, zanzando pelo hipermercado encontrei goiabas embaladas em saquetas individuais, caríssimas. Compraria-as, se fosse para remédio contra doença grave. Lembrei-me da fartura das goiabas que pesam nos galhos das árvores de porte médio e tronco rajado e retorcido. Se fosse definir em apenas  uma palavra um pomar de quintal brasileiro, já raro hoje em dia, escolheria da gramática portuguesa "Generosidade". Tudo é tão farto, tão perfumado e "tão doce que enjoa", como diz Djavan. Mas, dentre as frutas tropicais, adoro a jaca.  Grande, pesada, espinhuda, não tem uma aparência lá muito convidativa. É ruim de transportar, pois os pequenos picos que cobrem a casca acabam por marcar as mãos mais frágeis. Não é fácil de romper a casca grossa, pois, além da sua espessura, um visgo grosso e branco protege os bagos amarelo-ouro que se abrigam em torno de um talo robusto, aninhados em pequenas franjas da mesma cor. O cheiro da jaca é indescritível. Não há palavras para descrever o aroma forte e penetrante, não se come jaca escondido. O sabor doce dos gomos, firmes, quando a  jaca é dura; macios, quando a jaca é mole. Até para os produtores, a variedade da jaca é um mistério somente revelado quando aberto o primeiro fruto.

Não, o livro Catálogo de Sombras não é sobre jacas, frutas ou coisas dessa natureza. Em dezembro, quando as noites são mais longas, nos escondendo do frio, conversávamos. Lá pelas tantas, Tony perguntou: "Conheces o Agualusa?" Não. Ele havia visto uma entrevista do autor no Roda Viva, e ficou interessado na conversa deste angolano de Huambo. Partilhou com Nivaldo Tenório, que havia-o visto no FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty). O nosso contista garanhunese  teceu mil elogios a este autor. Ficou a ideia. Posteriormente, na nossa ronda às estantes das livrarias, caiu-me nas mãos "A educação sentimental dos pássaros". Li três páginas e  devolvi o livro ao seu lugar, à contragosto. Era necessário providenciar as compras semanal. Apressei-me na leitura das obras técnicas que tinha em casa, só para ter o pretexto de ir devolvê-las à Biblioteca da UA e voltar pelo caminho do sol com o Catálogo das Sombras nas mãos, uma pequena transgressão ao meu intento de ler apenas literatura portuguesa enquanto por aqui permanecer. Só dei uma escorregadinha para a literatura africana de expressão lusófona.  

Lemos o livro, eu e Tony, os dois ao mesmo tempo, compartilhando, como temos feito nestes últimos 21 anos.  Quando ele soltava, eu pegava. E depois, discutíamos os contos tão reveladores dos caminhos percorridos por este autor. De Lisboa ao Maranhão, do Rio de Janeiro à Angola, passa por Pernambuco duas vezes nesta obra. O cenário familiar, a descrição dos depósitos de livros antigos e dos alfarrabistas (Essa palavra lembra-me demais a Antonio Cândido, pai de Mayda!), as investigações fictícias até que poderiam ser verídicas de tão bem contadas. As reflexões pertinentes são expostas numa linguagem clara e ao mesmo tempo lírica. Refletindo sobre o ritmo da vida neste nosso mundo apressado, Agualusa expõe assim em Uma silhueta ardendo ao crepúsculo

"O velho voava de regresso a casa.  Não gostava de aviões. Nunca gostara. Os aviões, é bem certo, reduziram a Terra a uma rede de  metro. Tiraram-lhe o mistério e a grandeza. Também não gostava de auto-estradas, nem de pontes, e tão-pouco de telefones. Odiava a internet. As viagens rápidas, diziam, eram da mesma inversa natureza que o fast-food - o triunfo da barbárie através da tecnologia. Defendia com rigor o regresso da humanidade à lentidão: Quanto mais corremos, menos tempo temos." (pp.135-136)

Através da visão obtusa de um velho, o angolano nos lembra do aspecto negativo desta pressa que nos consome. Apressamos a semana, para que chegue logo a sexta-feira, o próximo mês, as próximas férias, o próximo ano. Não vivemos a vida, o hoje, em busca do que talvez, nem alcançaremos. E é nas reflexões sobre o tempo que este livro de minha estréia no mundo "agualusiano", me deixa marcas indeléveis. Em "Rita cantava uma canção redentora", tive uma clara ideia de como 15 anos de ausência faz diferença no que vemos. E se, de repente, descobrisse que as suas memórias são todas mentiras criadas para por você mesmo para colorir sua vida? Situação difícil.

Sim, mas, e a jaca?

Nesse meu primeiro encontro com Agualusa, li o livro como quem come doce de jaca, uma delícia suprema. Era preciso ler aos poucos, da mesma forma que cortamos a barra firme em finas fatias. Após cada conto, a reflexão era tão necessária quanto uns goles d'água para limpar o paladar do doce, só assim possível apreciar o sabor dessa iguaria de feira, tipicamente nordestina. Li o 'Catálogo de Sombras' roubando minutos da montanha de PDFs e textos impressos que fundamentam a tese que tenho que escrever, com o tempo a me acusar de fuga. Os minutos se transformam em horas, e as calorias se transformam em quilos, mas a leitura vale os arranjos necessários para deixar tudo certinho a seu tempo.   

Té manhã,
fiquem com Deus.  

3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Adorei!
    À uma certa altura eu me perguntei também, sim, mas, e a jaca? kkkk
    Compreensível para quem tem tão pouco tempo e tanta coisa para fazer, e acabo que acho lindo essa coisa de compartilhar tudo,leituras ,idéias,comentários, talvez, por n conseguir fazer igual...Talvez eu seja um pouco lenta de dedução...quem sabe?...
    Bjo, saudades!

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    1. Hehehehe, já tentou comer doce de jaca todo de uma vez? chega uma hora que dá arrepios de tão doce que é! Mas, não deixa de ser gostoso. Um beijo, visse?!

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