terça-feira, 27 de março de 2012

Leituras e reflexões: Milagrário Pessoal

Ainda em fevereiro, tivemos o prazer de ler em dupla, eu e Tony, o livro novo de Agualusa. É certo que eu ando dando a volta a minha saga pela literatura portuguesa. Mas, a verdade é que eu cai de amores por este autor luso-angolano. Com a justificação de  levar uma lembrança para  o Paulo Gervais, que foi seu professor na Faculdade de Direito, Tony comprou o livro.  Sobre Paulo Gervais, de quem tive o prazer de ser colega de trabalho, apenas uma palavra: é um gentleman. É tão educado, fala tão baixinho, que perto dele, eu pareço o Taz. Preparando os documentos para vir para cá, há mais de um ano atrás, estive com ele no cartório para providenciar uma Certidão de Nascimento de Luiza, pois, o Consulado exige uma Certidão com menos de 6 meses! Até então, para mim, Certidão de nascimento só se vencia com a certidão de Casamento (orh!) ou com a certidão de óbito. Mas, não é bem assim que funciona. Pois, na ocasião, Paulo Gervais disse-me: "Estar em Portugal é como conhecer a casa do seu avô." Nunca esqueci. Logicamente, eu não iria deixar Tony levar um livro para o amigo sem que eu visse direitinho do que se tratava. Lemos o livro antes da prenda ser encaminhada a seu destinatário. Este é o segundo livro do Agualusa que lemos, ou outro "Catálogo de Sombras" está devidamente registado em http://digaasnovas.blogspot.pt/search?updated-max=2012-02-13T23:45:00Z&max-results=7 . E, mais uma vez, foi uma delícia ler este escritor mais africano do que português, que une na sua narrativa o melhor de dois (ou mais) mundos.


Para a nossa surpresa, Milagrário Pessoal é um romance cuja ação se desenvolve através da investigação dos movimentos de transformação da nossa língua portuguesa. O autor discute a integração de neologismos ao nosso diversificado idioma, de forma que a ação desenvolve-se no mundo lusófono, com passagens em Goa, Timor, Angola, Lisboa e... Olinda! É muito interessante ver o nosso lugar pelo olhar estrangeiro. E reencontra Olinda nesta temporada portuguesa pelo olhar de Agualusa é um privilégio. A descrição de sítios como o Amparo é de uma perfeição de estar lá. Os personagens principais, um professor angolano de 2 metros de altura e mais de 80 anos e uma investigadora (pesquisadora acadêmica) lisboeta de rara beleza e azar no amor hospedam-se na Pousada do Amparo, e frequentam a Bodega do Véio, local onde são encontrados na boca dos jovens frequentadores os neologismos intrigantes, pois, além de ter capacidades mágicas, ninguém sabe de onde vieram e como entraram no vocabulário do mundo lusófono. Engraçado que neste meio tempo, o amigo Sadro Gama publicou na sua página no Facebook fotografias da famosa Bodega, lá no Amparo, pois era o dia de anos do Véio.
Neste livro, há constatações históricas muito engraçadas. Como aquela ideia que o português de Camões era mais parecido com o português que se fala atualmente no Brasil, justificando-se a métrica dos decassílabos, que com a pronuncia lusitana não dá certo, fica a faltar sílabas. Os portugueses engolem letras e até sílabas inteiras, são apressados para falar. Aqui "pessoa" pronucia-se "pssoa". O 'E' vai-se embora na enxurrada verbal. Isto dá trabalho para entender, mas a tudo acostuma. Ou a quase tudo... A personagem central, o professor negro, traduz exatamente a impressão que temos do mês de fevereiro na Europa: vive-se muito bem em Portugal durante todo o ano, exceto o segundo mês do ano. A certa altura, ele decreta:  "Fevereiro na Europa não é um mês, é uma condenação". É um frio tão frio, que é a muito custo que nós dos trópicos, suportamos o fim do inverno. As palavras são fáceis para Agualusa. Ele vai encaixando as palavras e constrói belíssimas descrições do óbvio, que nos faz pensar: "Como é que não pensei assim antes?!" Na página 97, ele inspira-nos assim: "Amor, o nome que se dá a cor do céu momentos antes do sol desaparecer no mar". É o que vemos todo final de tarde em Aveiro, quando Deus desce do céu para se mostrar ao homem, que muito atarefado não levanta a cabeça dos papéis e dos problemas que ele mesmo criou.

É um livro excelente. Dá-se a pensar na transformação quotidiana da língua. Com um pouco mais de sal, pimenta e dendê, Agualusa será um Jorge, o nosso Amado.

Escrevi, ouvindo com saudades, Alceu Valença que é a cara de Olinda!
Até amanhã, fiquem com Deus! 
  
   

2 comentários:

  1. Já estou ansiosa para ler estes livros, não posso ver nada já quero ler, acho que nasci traça em outra vida kkkk. Adorei o comentário "É tão educado, fala tão baixinho, que perto dele, eu pareço o Taz." Também o conheci e realmente Paulo Gervais é assim, mais você nem de longe parece o Taz, lembra o que falei que adorava quando você falava nas reuniões? é muito bom ouvi-la e continuo com a mesma opinião , leio Chico Buarque e lembro de você. Bjss querida saudades.

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    1. Alcione, você é ótima! Essa de nascer traça na outra vida é great! E fiquei tão feliz por ser lembrada através de uma criatura como o Chico Buarque... É muito luxo! Saudades de você. Beijos.

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