sábado, 29 de setembro de 2012

Leituras e reflexões: O fio das missangas

Sempre há alguém perto ou perto/longe que, mesmo sem qualquer intenção acaba por me indicar verdadeiras pérolas literárias. E com estas jóias presenteadas, legítimas partilhas de coração, vou lendo e metendo as contas nos fios, tecendo os colares da minha existência. Nunca havia ouvido falar do Mia Couto. Até o dia que a minha querida amiga Edna Maria, com quem tanto aprendi acerca da reflexão como um hábito, postou no Facebook um vídeo em que o autor lia um ensaio de sua autoria sobre o medo. O vídeo é parte de uma conferência proferida em Estoril em 2011. Minha amiga postou porque traduzia o difícil momento que atravessava, felizmente, hoje superado. Fiquei alguns dias pensando no autor. Primeiro, porque estava certa que Mia era uma mulher, pois é o nome da falecida gata de Mariana. Depois, pelo texto maravilhoso. Por fim, pela cara do sujeito. Costumo ler o livro antes de conhecer a cara do autor. Como o primeiro contato foi através desse vídeo, conheci e atestei que o autor é um luso-moçambicano com várias nuances de beleza.
 
Assim, no domingo de páscoa saimos para comer um frango frito, pois o clima estava meio desanimado na nossa grande família de duas pessoas. Um desafio manter-se à superficie na ausência quando estamos acostumados ao alegre burburinho das famílias imensas que nos criou. No meio do caminho, havia uma feirinha de livros da Leya. Meus olhos boiram sobre os livros, queria passar incólume pelas publicações. Já ia quase lá na ponta, quando o último ângulo de minha visão alcançou um nome, quase uma onomatopéia felina. Impossível resistir. Carreguei dois pelo preço de um, mas deixei-os dormir alguns meses, numa prateleira de cozinha. Somente quando fui arrumar a bagagem, sentei-me num canto e li o primeiro conto. Guardei o livro, inconcientemente me preparando para o retorno de junho. 
 
Li o livro O Fio das missangas entre dois continentes e dois hemisférios, entre junho e julho. Entre verão e inverno. São contos na prosa poética de Mia Couto, tão conhecida - e valorizada - nestas bandas do mundo. Em "O cesto" o autor relata a história de uma mulher que vive a longa doença do marido, e quando ele morre, sente-se entre o alívio da liberdade e desamparada pela ausência da obrigação dos cuidados. Percebe, sem saber da morte do marido que a juventude já passou e que "envelhecer é ser tomado pelo tempo, um modo de ser dono do corpo." (p. 25) A velhice é um tema recorrente neste livro, talvez reflexo da longevidade da cultura africana. O tempo passa como contas a correr entre os dedos, dando suas voltas infindas, e nestas voltas ficamos entre aprender e mudar ou permanecer. As contas são as experiências da vida, a cada uma aumentamos o nosso cordão. Aos poucos e ao longo da vida, aprendemos a lidar com as dificuldades, as decepções e a solidão.  Do mesmo jeito que inventou  o mendigo sexta-feira: "Lhe concordo doutor: sou eu que invento minhas doenças. Mas eu, velho e sozinho, o que posso fazer? Estar doente é a minha única maneira de provar que estou vivo" (p. 83). Entre a saúde perdida e a doença concreta, é preciso buscar o equilíbrio necessário para seguir em frente. A ameaça da morte tem o poder de colocar as coisas no seu devido lugar.
 
Entre a velhice e a infância, o livro nos ensina a não adiarmos a vida para amanhã, para a semana que vem, para o ano que vem. Aprender é renunciar certezas e reconstruir saberes. O que se tem para agora é o hoje. Outro dia, refletíamos - eu e as companheiras do Conversas de Cumadre - acerca do que temos feito da infância de nossas crianças, com tantos compromissos, tantas pressões em tão tenra idade.  Sobre o tempo não vivido (que é diferente do tempo perdido), o autor reflete: "O que valia ser criança se lhe faltava a infância?(...) Por que nos fazem, com esta idade e tão pequenos, se a vida aparece sempre adiada para outras idades, outras vidas?" (p. 114) É tanta atividade extra, tanta responsabilidade precoce que a criança torna-se um arremedo de adulto, e na hora de ser adulto, emergem criancises somáticas que apenas são reflexos de um período que não desfrutou.
 
Li o livro encantada, num universo ora estranho por se inédito, ora familiar, Construído com palavras perfeitas de um português sutilmente mestiço, com um suave tempero africano que me lembrou a sabedoria afro da Bahia. E no manejo dos tachos e escumadeiras, aprendi que "cozinhar é o ato mais privado e arriscado. No alimento, se coloca ternura ou ódio. Na panela se verte tempeiro ou veneno" (p. 128). Cozinhar para a avó africana era tarefa indelegável, cuja plenitude se encontra na alegria de Gustavo entre os cortes e vegetais ou pela santa reflexão de Mytsi e sua suspeita que o primeiro pé de manjericão foi plantado pela mão de Jesus Cristo, pessoalmente, sem intermediários.
 
É uma leitura lírica, leve, mesmo quando densa de traições, fracassos e enganos, comuns a qualquer vida. E por isso mesmo,  deliciosa.  
 
A seguir, o video que promoveu a inclusão do autor ao meu (multi) universo.
 
 
Até amanhã, fiquem com Deus.

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