sábado, 3 de agosto de 2013

Cozinha

Ainda estou a organizar a rotina. Quem é levemente (?!) caótica como eu, precisa de um tempo maior para colocar as coisas no lugar, estabelecer uma rotina e vivenciar um cotidiano menos tumultuado. Se alguns colegas tem a sensação de que após o FIG, as atividades ficam acumuladas e desorganizadas, ocorrendo até a desmobilização para a concretização de ações, me sinto assim elevado à décima potência, se é que ela existe. Mas, aos poucos, temos a esperança que as coisas irão se arranjar, embora eu perca muito tempo tateando nas brumas deste afastamento de quase três anos.  
 
Uma das situações que mais sentia saudades enquanto estive fora eram os almoços de domingo. Quando mamãe ainda habitava fisicamente entre nós, quase todos os domingos almoçávamos na casa dela. A típica exploração dos filhos não escolhe idade. Às vezes íamos a casa de Ilza ou a de Mahria. Depois que ela cumpriu a missão neste plano, tentamos construir uma rotina de almoços itinerantes. Mas, com o tempo, a repetição tornou o programa em obrigação. E não há nada divertido em obrigações. Assim, esporadicamente, vamos à casa de Ilma, Ilza e Mahria. A feijoada de Ilda é imperdível. O strogonoff de Izabel, o prato mais concorrido das ceias de Natal. Domingo almoçamos com Vilma, o tempero mais parecido com o de mamãe. E também esporadicamente, elas vêm com suas famílias almoçar conosco. Em razão disso, estava lutando até agora com um imenso frango orgânico, criado no quintal de Romerito, que Tony comprou há meses. Enquanto não regressávamos, os bichos engordavam soltos no quintal. 
 
Logo de manhã, fomos à feira, após apanharmos os frangos no mercadinho do Romerito. Como eu não mato os bichos, levamos a um abatedouro que fica na CEAGA. Impressionante a prática das pessoas que trabalham neste estabelecimento. Em minutos, a mulherzinha lá mandou duas galinhas para o além (dos bichos, claro!) e nos devolveu a carcaça já depenada. O meu serviço era dissecar o animal a bem da cadeia alimentar. Triste de um bicho que o outro engole. Protelei, e, como sempre, já ao final da tarde, abandonei o sofá, onde exercitava o meu vício de assistir partes de programas televisivos pela metade. Um reclame do programa da Nigela me lembrou a obrigação de tratar do cadáver galináceo que me esperava na cozinha. Escolhi um cd aleatoriamente, aproveitando a folga que Luiza e Mariana estavam dando, a brincarem quietinhas no quarto. Por acaso, Simon e Garfunkel me acompanharam aos temperos.
 
As canções no cd me trouxeram algumas recordações, pois são as músicas que ouvia enquanto brincava no "quarto de bagunça" lá na casa do Magano. Na nossa casa da periferia, o último dos três quartos não era utilizado para dormida, evitando sérios conflitos decorrentes de brinquedos improvisados, bonecas, livros e lápis espalhados por toda parte. Lá, ficava tudo concentrado no nosso caos infantil, e era lá que recebíamos nossos amigos para brincar durante tardes inteiras. E se alguém esquecesse, íamos também noite à dentro. A brincadeira só acabava quando um adulto chamava: "Dinhooooo! olha a  hora!" ou: "Márcia, pai já chegou!", ou até mesmo: "Madrinha Neide, vovó chama." Era assim que os irmãos mais velhos iam chamar os menores lá em casa. Mamãe não queria que "andássemos pelas casas", e acabava com a casa cheia de meninos. Desde que fosse no quarto de bagunça ou no quintal, não havia problemas. Sempre havia espaço para mais um.
 
Às vezes, aproveitava a distração dela e ganhava o mundo. Ocupada com os afazeres de casa e com as tarefas da Igreja, não dava conta da minha ausência. Geralmente, entrava nas casas dos vizinhos pelas portas dos quintais e ficava varejeando as cozinhas com meus companheiros. Sempre ganhávamos um toucinho ainda quentinho, uma raspa de bolo de noiva, um naco de beju feito na hora. A minha maior transgressão era subir meia ladeira, atravessar para a rua paralela, andar pelos matos e ir para o terreiro de Tonha. Durante muito tempo os culto afro-brasileiro foram proibidos no Brasil e até reprimidos pela polícia. Em razão disso, localizavam-se sempre em bairros mais  afastados. Após superada a ilegalidade, restou o preconceito. O termo "xangozeiro",  uma alusão a Xangô, entidade do candomblé, era uma ofensa grave. Não era recomendável ser visto nas cercanias de tais lugares. Nunca vi mal nisso. Atraída pela dança e pela comida, frequentei terreiros entre os 7 ou 8 anos. Gostava quando as madames da sociedade garanhuense iam encomendar trabalhos para espantar as "periguetes" de seus casamentos, pois, se a graça solicitada era alta, o despacho tinha que ser bem servido. Nas segundas-feiras, ao final da tarde, os cavalos de santo incorporavam suas giras e dançavam ao som dos atabaques. Depois, servia-se a oferenda. Como em todo culto afro-brasileiro, as visitas são muito bem tratadas, e, apesar de eu ser habitué da mesa de santo, sempre me presenteavam com bons pedaços de bode guisado numa pequena tigela feita com material orgânico (parecia casca de coco, muito bem polida), uma saborosa farofa amarelinha. Às vezes, serviam galinha assada. Tudo muito gostoso. Depois, eles sempre me davam doces e pipocas. Achava estranho que as mulheres adultas falassem com uma vozinha fina de criança miúda, mas, tudo bem. Havia também um velho, que pegava nos lados da minha cabeça e alisava meus cabelos murmurando: "coisa linda, coisa linda". Em criança, eu era bem branquinha, e isso, de alguma forma, me dava alguma notoriedade naquela periferia. Só me incomodou no dia que o velho bateu-me com muita força nos ouvidos, e eu fiquei meio surda. Mas, regularmente voltava, e quando o velho se aproximava, eu dava um jeito de me safar. Depois de muitos anos entendi que a comida variava conforme a entidade evocada e que casa "santo" tem seus gostos e suas interdições. Concordo plenamente com aquele que não aprecia repolho. Uma vez comi, e não me lembro de ter comido algo pior. Quando comecei a ler Jorge Amado, Pierre Verger e Roger Bastide nos meus tempos da Antropologia, comecei a entender o que via enquanto criança. Nem tive surpresa quando fui assistir uma defesa no mestrado de Antropologia, cuja ideia da antropóloga com formação básica em nutrição era análisar das contribuições nutricionais dos terreiros de Xangô para a população que vive no entorno dos terreiros. Naquela defesa, me vi pequena entrando nas cozinhas e comendo tudo que me davam sem perguntar o que era, só confiando no meu olfato. Só errei no dia em que levei Vilma comigo. Na incorporação, ela ficou com medo e saiu a correr. Fiquei com vergonha e rarearam-se as visitas, até que um dia não sentiram mais a minha falta.   
 
Nossa cozinha pernambucana é um misto das influencias étnicas e culturais que recebemos. Minha mãe cozinhava bem, mas alguns pratos ela deixou de fazer após a morte do meu pai. Igualmente, ocorre o mesmo com D. Nilza, minha sogra. Há coisas que ela só fazia quando Oswaldo era vivo. Interdições justificadas pela afetividade, pois na cozinha doméstica, aquela onde se produz a comida cotidiana da família, é um espaço onde se produz mais do que o alimento para o corpo. É na cozinha e na mesa que se reproduzem em sabores as emoções, onde se estreitam os laços de pertença a um grupo social primário. A cozinha de Rita suporta, como coração de mãe, 45 pessoas para almoçar. E tão importante quanto a comida é a companhia ruidosa de uma família imensa. Nestas ocasiões, conforme Mia Couto, em a avó, a cidade e o semáforo: "Cozinhar não é serviço. Cozinhar é um modo de amar os outros." É em busca disso que enfrento o talho e a faca, superando minhas limitações culinárias, a oferecer um pouco de mim e de nós para cada um que vem.
 
Vou-me a enfrentar o alho e a cebola, pois os temperos me esperam.
 
Até amanhã, fiquem com Deus.
 
PS: Alguns leitores construíram a rotina de ler essas "mal traçadas linhas" no sábado pela manhã. Agora, como estamos no fuso brasileiro, vou tentar estabelecer a rotina da escrita ao final das tardes do sábado. Espero que as nossas rotinas continuem se entrecruzando através destes textos.

5 comentários:

  1. Diria , parafrazeando n sei quem, eu diria que "cozinhar é uma arte", e como tal não se contrai como doença, é nato, só se aprende com o tempo, aperfeiçoa-se com o estudo, mas ou se tem jeito para a coisa ou não, e aí é um verdadeiro desastre. Delícia sua explanação e, espero que tenha-se uma boa galinhada feita por suas próprias mãos. Bjo. Ciao!

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  2. Anninha xangozeira! kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk!

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  3. kkkkkkkkkkkkk, eu nao gostei de ir no terreiro!

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  4. "Em criança, eu era bem branquinha." Ainda é, minha fia! kkkkkkkkkkk

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  5. Putz... super nostálgico seu post... Imaginei até as descrições da época em q eu não era "viva"... Muito bo, vc escreve divinamente! Bjs e saudades...

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