domingo, 30 de março de 2014

Leituras e Reflexões: A emparedada da Rua Nova

Quando eu era menina, tinha o hábito de pensar sobre o sentido das frases que as pessoas grandes falavam. E, meus questionamentos de brincadeira conduziam-me a coisas engraçadas. Nestas sessões de reflexão espontâneas, pois, naquela época não existia a "cadeirinha de pensar" para analisarmos as bobices que fazíamos. No meu tempo de criança, quando fazíamos bobagens, a sentença era "pau no lombo". Para efetivamente me dar umas merecidas lapadas, mamãe tinha que me pegar na traição: fazia uma tocaia e me atacava quando eu estava indefesa, vendo algo na TV. Se eu percebesse a movimentação ou flagrasse a "marieta" na sua mão, eu corria e subia nas árvores do quintal. Ela gritava lá de baixo, vencida: "Você não vai ficar ai a vida toda! Um dia você desce! Ai então, você me paga!" A vantagem era que, me demorando um pouco mais a comer as frutas quase verdes, a raiva passava e ela esquecia no castigo. Hoje em dia, a nova psicologia diz que é para por o menino treloso para "pensar". Daí para o exercício de pensar se tornar um castigo ou um tortura é um pulinho. Nem se espante se os jovens em geral, não apreciem o exercício de pensar. Quando eu era criança, gostava de brincar de pensar. Subia na árvore da frente de casa e refletia sobre o que ouvia. Uma delas era: "entre quatro paredes, tudo é permitido". As pessoas grandes diziam isso, com olhares maliciosos, enquanto eu chegava a conclusão: "entre quatro paredes, tudo é permitido. Menos sair, pois não há portas ou janelas". E, no meu pensamento pueril e fatalista, pensava: "entre quatro paredes e um teto, o lugar vira um túmulo, onde também não é possível respirar." E começava a ficar agoniada com a prisão de alvernaria que se fechava sobre minha cabeça, e apertava o meu pescoço. Por isso, tinha que pensar somente sobre as árvores.

Ouvi falar no emparedamento quando Ilma cursava História na UPE. A profa. Giseuda relatava, em suas aulas o tratamento desumano a que estavam sujeitas as mulheres nas sociedade patriarcal pernambucana do século XVIII e XIX.  Eu ainda estava no segundo grau, lá no Colégio Municipal, mas, enquanto esperávamos o ônibus para ir para casa, Ilma me contava o que tinha aprendido no dia. E eu fiquei estarrecida com o emparedamento. Anos depois, quando ela já cursava  Artes no CAC/UFPE e eu aventurava no mestrado em Antropologia no CFCH/UFPE (nunca consegui entrar, nunca me quiseram por lá. Depois eu conto essa história!), Ilma levou-me para ver uma exposição sobre escritores pernambucanos. Entre versos de Manuel Bandeira e Carlos Penna Filho, junto com a prosa de Joaquim  Cardozo havia um poster de um sapato feminino branco amarrado de cordas. Foi a primeira vez que li um trecho de Carneiro Vilela, enquanto minha irmã me lembrava da história da Emparedada da Rua Nova. Procurei o livro na biblioteca, mas, estava sempre emprestado. Esqueci-me.

O tempo passou e dia desses Mahria partilhou no Facebook que estava a ler o tal livro. Nem hesitei e me pus logo na  fila do empréstimo. Uma amiga dela havia emprestado o livro lacrado, publicado pela CEPE, que havia ganhado de alguém. Como estava cheia de coisas para fazer, emprestou a minha irmã. E de empréstimo em empréstimo, o livro chegou-me às mãos. Trata-se de um livro imenso, escrito em duas partes, totalizando  475 páginas. Um verdadeiro tijolo de seis furos. Como única obra deste escritor pernambucano foi publicado aos pedaços num jornal da capital, os capítulos são bem curtinhos, o que facilita a leitura. Todavia, o que possibilita o mais ocupado dos seres humanos a devorar a obra em poucas semanas é mesmo a história e o estilo do autor. Numa narrativa constituída de idas e voltas, o autor desenvolve o enredo de amor, traição e vingança como um filme, alinhavando as ações que decorrem concomitantemente. Além disso, descreve os usos e costumes do Recife e cercanias no final do Século XIX. Para se ter uma ideia, naquela época a Madalena era longe e os ricos banhavam-se no Rio Jaboatão! As personagens são reproduções dos tipos comuns da sociedade da época: imigrantes portugueses bem sucedidos no comércio, senhores de engenho falidos, ricos proprietários de terras tentando a inserção na alta sociedade pernambucana às custas de muita ostentação. Neste cenário é que se desenvolve a história do amor de Josefina e Leandro. Só que o sujeito era para lá de namorador, e mantinha um romance com a melhor amiga de Josefina. E para entornar o caldo, o sujeito arrasta também para a história a jovem Clotilde, filha de Josefina e do Comendador Favais.  Quando o último descobre as peripécias do jovem com as suas mulheres, dá-se a desgraça. Toda honra era lavada à morte, e o português contratou dois sujeitos para finalizar o Leandro. É então que aparece, ao meu ver, o mais interessante personagem da saga do suposto crime mais famoso do centro do Recife: o Bigode de Arame. Esse sujeito, que leva uma vida absolutamente fora da lei, a promover arruaças nas feiras de Vitória de Santo Antão tinha uma filosofia muito particular para desenvolver o seu trabalho. É uma personagem coadjuvante que rouba a cena. 

Não costumo contar o final do livro, mas, como o próprio título do livro enuncia, uma das mulheres envolvidas é emparedada. Esse crime particularmente me chocou. Já li muitos livros com descrições de crime horrendos. Mas este, supera a qualquer um. Primeiro, o mandante sequestra um pobre de um pedreiro. Venda-o e conduz o sujeito aterrorizado pelas ruas do Recife antigo num coche por um bom tempo. Por fim chegam a uma residência e dirigem-se aos fundos do casarão, conduzindo o pedreiro encapuzado. Somente então, restituem-lhe as vistas. No quartinho, há um saco fechado que se mexe. Uma pessoa amordaçada. É instruído a construir uma parede e cobri-la de ladrilhos, tal qual o que compõe o espaço ao redor.  A vítima, livra-se da mordaça e suplica enquanto a parede tranca-a para sempre. Entre quatro paredes, a espera da morte no escuro. 

Nem sei se é real ou ficção publicada no Jornal Pequeno, nos primeiros anos do Século XX. Apenas penso que é tão horrível ter sido aceitável esse tipo de situação, que não me espanta que 65% dos inquiridos numa pesquisa de opinião tenham concordado que a mulher que se veste "assim ou assado" merece ser atacada por estupradores. Esse tipo de posicionamento tem raízes históricas tão profundas, que apesar de nos deixar estarrecidos e indignados essa criminalização da possível vítima, confirma que ainda há um longo caminho a ser percorrido para estabelecer o respeito a pessoa como princípio básico da convivência humana. 

Até amanhã, fiquem com Deus.

PS: Quanto a série da Globo "Amores roubados", ainda não assisti. Os DVDs estão cá às minhas vistas, mas depois que li o livro e assisti o primeiro capítulo, fiquei enojada. Não trata-se de uma adaptação, mas de uma violência à memória do autor, infelizmente, permitida pela lei do domínio público. Quando passar a náusea, assistirei, até porque me custou 36 Reais e há no trabalho da Globo boas paisagens do perímetro irrigado do Rio São Francisco e do Raso da Catarina, terra do prof. Edson Dantas.

Um comentário:

  1. Eu sei como é essa coisa de cadeira disso ou daquilo, Mayda e Mytsi tiveram a "cadeira da boba", na escola, coisa que elas trouxeram para casa e assim nomearam uma cadeira de palhinha que vivia à escrivaninha do pai...Mas hoje tudo é à favor dos miúdos, e nós pais ficamos de mãos atadas para pô-los num castigo, no máximo o que se pode fazer é para o quarto sem tv, video- game, e claro, celular...Nós entrávamos na ripa,lindinhas. Sim Anninha, meu maior pavor é mesmo um caso de enterro em vida, tanto é que n vejo filmes do assunto, pois me causa um pânico sem tamanho plausível. Até o provador da "Nova Fátima" me faz desistir de alguma compra lá, ou compro sem provar mesmo. Como vc, eu sempre quis ler este livro, e Emídia me , ou nos propiciou esta maravilha. Desbocado e autêntico, Carneiro Vilela contou (verdade ou n) o que lhe vinha por aqueles dias de sua existência, e , saibamos aquele n foi o único caso de emparedamento relatado nos anais da imprensa brasileira, já li outras coisas, do gênero. Gostei da sua descrição da leitura e da comparação com a mine-série da Globo, a qual n vi , nem pretendo ver, pois estas histórias "baseadas" sempre indicam alterações da obra ... e esta , conforme minhas colegas de trabalho foram me contando, achei um absurdo e uma afronta ao original. O que fica disso tudo é , então a certeza que a mulher em todos os tempos nunca teve o valor q sempre mereceu. E num mundo machista a coisa tende a ficar como está e até piorar (que Deus nos livre). De vez em quanto um idiota publica um ultraje prá quem lê e tem consciência de que aquilo acontece e, é isso sim, uma violação dos direitos humanos, como sucedeu recentemente na imprensa pernambucana. Até quando essas coisas serão permitidas? Quando vai-se entender que nosso corpo é nossa propriedade e de mais ninguém? Que respeito sempre cabe e é devido, e que mulher n é cidadão de segunda classe ou menos? Em pleno século XXI, isso é inadmissível, deveria ser "prego batido"... Quanto tempo mais será preciso para a ficha cair?...

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