domingo, 9 de março de 2014

When I'm 64!




Penso que Sargent Peppers é o meu disco preferido dos Beatles. Quando era criança, passava horas ouvindo e repetindo essas músicas que tocavam à exaustão em sequência: "When I'm Sixty For" e "Lovely Rita". Nem tinha ideia sobre o que era, pois o que importava era agradar aos meus ouvidos, da maneira que as coisas podem ser simples na infância. Ouvia as músicas olhando a capa do LP, imaginando a vida daquelas figuras, de onde vinham e qual o papel de cada um naquele cenário. Anos depois, quando li um livro do Paulo Coelho, que me foi emprestado por Valber van der Linden, mas não lembro qual, uma das revelações que ele teve, embalado com muita droga, foi que nesta capa tem a cara da Besta. Não pude deixar de achar graça de que passei parte das horas mortas da minha infância a olhar uma foto na qual especula-se que o próprio demônio aparece! Que me perdoem os defensores ferrenhos da tecnologia, mas as capas dos Lps fazem falta. Eram verdadeiras obras de arte, e penso que todo aquele espaço para acomodar o "bolachão" faz falta aos designs.

Anos depois, quando comecei a perceber das letras das músicas, compreendi que "When I'm 64" tratava-se a projeção de vida dos compositores (e pelo perfil era mesmo a cara do Sir Paul) para umas décadas a frente. E nesta semana, esse exercício de "daqui há 10 anos" tem sido uma constante em meus dias. Talvez por estar na reta final de alguns projetos. Ou por que a vida nos promove algumas surpresas. Algumas boas. Outras, nem tanto. Há muitos anos atrás, na adolescência, caiu-me nas mãos uns livros de Lobsang Rampa. Acho que pouquíssimos conhecem pois não se trata da "boa literatura". São as memórias de um monge budista tibetano, que enfrentou toda sorte de situações, desde a invasão do Tibet pelos chineses, até o exercício de sua profissão - ele era médico - como prisioneiro de guerra na Manchuria. Um mundo absolutamente diferente do nosso. No livro "O médico de Lhasa", coincidentemente também emprestado por Valber, o autor, ao explicar a filosofia budista, conduzia o leitor a uma reflexão mais ou menos, assim: "o que lhe aflige, lhe mobiliza, que amendronta hoje, que importancia terá isso daqui há dez anos?" Quando fazemos esse exercício de afastamento, quase um "begin here, begin there" dos métodos etnográficos, percebemos que damos exagerada importância à coisas miúdas, e desvalorizamos o que realmente é importante. 

Quem nunca pensou, meio desesperado: "E agora?" Viver é fazer escolhas. Muitas, não farão muita diferença, passada uma década. O que comer, o que vestir, como empregar o tempo livre. Decidimos isso todos os dias, desde que temos capacidade para raciocinar. Mesmo um bebê certamente troca o dia pela noite de caso pensado. Já passei a experiência e via nos olhos da minha menina aquele brilho da decisão: "hoje não durmo mais!" E o mundo que se ajuste às vontades do neném de três meses. O tempo passa e, gradativamente, o mundo toma as rédeas, e nós é que precisamos nos adaptar a ele. Ou melhor, aos que resulta das nossas próprias escolhas. Numa época da minha vida, quando morava em Garanhuns, trabalhava em Caruaru e estudava no Recife, morei na casa de D. Nilza, e, jamais me esquecerei de um calendário com mensagens que havia na parede. Não sei porque artes, todas as vezes que olhava para aquele cromo, lia: "Toda escolha implica numa renúncia". De tanto repetir, acabei aprendendo. Não se pode ter tudo. É bem como aquele poema de Cecília Meireles que tinha no meu livro da sétima série:

Ou isto ou aquilo
Cecília Meireles
Ou se tem chuva e não se tem sol,
ou se tem sol e não se tem chuva!
Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!
Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.
É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo nos dois lugares!
Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.
Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo...
e vivo escolhendo o dia inteiro!
Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranqüilo.
Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.

Às vezes, realmente importa o que fazemos e o que dizemos. Abrir a boca para falar algo de alguém é uma ação muito simples, mas que pode repercutir muito, principalmente quando o que se fala não é lá muito positivo. Então essa mania inconsequente de falar o que pensa do modo que dá na telha não é uma prática construtiva. No mínimo perde-se tempo. E para nós, diferente dos americanos do norte, onde tempo é dinheiro, aqui tempo é vida. E vida não deve ser desperdiçada assim.

Há escolhas cujo efeito é mais duradouro. A chegada inesperada de um bebé tira a família da zona de conforto, desorganiza os planos. É necessário rever prioridades, rotas, caminhos. Mas, gradativamente encontra-se o equilíbrio e as coisas se ajeitam. É somente o tempo que promove a adaptação às mudanças. E foi nesse momento, meio turbulento, mas absolutamente normal e por isso mesmo, previsível, que percebi a passagem do tempo. Com um pouco mais o mais novo bebé Ferreira poderia ser nosso neto, pois a mamãe inesperada e estreante nasceu no mesmo ano que começamos o nosso namoro. Ontem, quase colocamos fogo na casa, pois Izabel e Mariana tiveram a ideia de colocar 50 velas do aniversário de Ilma sobre um bolo pequeno. Aquilo tudo virou uma labareda laranjada, e cantamos o parabéns da nossa irmã às pressas, já com a mão no telefone para chamar o 190, caso o bolo incendiasse de vez. E hoje, assaltou-nos a triste notícia que uma jovem, muito conhecida na cidade, vítima da depressão, buscou a paz no suicídio, deixando para trás uma vida imensa que teria pela frente.  Fomos todos vencidos por uma doença silenciosa, que até chegar ao ápice, promove um sofrimento imensurável ao portador, e aos que com ele convive.

Apesar de ter a plena certeza que nosso tempo é só hoje, não me furto do exercício inicial do "When I'm 64". Daqui a 24 anos, já estarei reformada e com saúde. Que me importam as rugas e o excesso de peso, desde que não comprometam o ritmo do meu coração? Certamente, já teremos netos e precisarei de uma casa com um belo jardim e árvores para as crianças correrem. Temos mais vinte e quatro anos para convencer a Tony que os gatos são bichos bonzinhos e que são boas companhias. Teremos um lugar para criar galinhas sem perturbar a vizinhança. A mesa da minha cozinha terá 12 lugares. Se Deus permitir e nós fizermos por onde, teremos mais álbuns de viagens, muitos roteiros cumpridos e muitos a desenvolver. Sempre haverá jovens levando - e devolvendo - meus livros emprestados. E, certamente, Sargent Peppers ainda tocará nalgum final de tarde com cheiro de café e bolo de laranja.

Para lembrar, segue a música de que falei!

 

Até amanhã, fiquem com Deus.

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