domingo, 20 de abril de 2014

A Paixão de Cristo


Não me agrada muito escrever textos de ocasião. Entretanto, há dias venho lembrando de semanas santas passadas. O que mais me recorda desse período é o sofrimento alimentar. Nunca fui muito fã de peixe, e quando era criança, minha mãe começava com a dieta sagrada da segunda-feira. Era peixe todo dia. E como não estávamos numa boa fase financeira, os peixes eram mais humildes. Cavalinhas, sardinhas e ciobas. No máximo, um dourado. O bacalhau, já caro naquela época, nunca fez parte de nossos menus nos meus primeiros 10 anos. Só uma vez, quando Socorro veio com Cândido, que a esta época estudava Economia em Fortaleza , passar o feriado de semana santa, que minha mãe fez o sacrossanto sacrifício orçamental de comprar uma peça de bacalhau para o genro, pois, ele não gostava de qualquer peixe. Para mim, deu no mesmo. A tortura do feijão de côco e peixe por uma semana, me deixava com o estômago roendo, pois, se não comesse  o que tinha, não havia outra opção. O tempo passou, acabei me adaptando ao peixe, e hoje já não sofro mais. Até porque, atualmente, as tradições são mais flexíveis e não pagamos passagem para o fogo do inferno por causa de um pedacinho de carne. O mal é o que sai da boca do homem, já diria nosso senhor. Portanto, o que se come não influencia tanto assim.

Há 30 anos atrás, a semana santa  era levada à risca. No rádio, só tocavam músicas religiosas ou fúnebres. Os filmes na TV eram sempre sobre a vida e a morte de Cristo. Quando não tinha mais o que passar, a vida de Moisés e até Ben-Hur eram escalados. Falava-se baixo e iam à Igreja em horários estranhos para vigílias e orações sem fim. Alguns vestiam-se de escuro, jejuavam e participavam do lava-pés. Como mamãe era evangélica, as cerimônias eram ainda mais contritas. E eu cochilava nas tardes-noites quentes, de tanto acompanhar as moscas graúdas zumbindo pelas janelas. Além do feriado, a parte boa da Semana Santa era a malhação do Judas. Os meninos de D. Mima sempre arrecadavam roupas velhas e acessórios para vestir um boneco enchido de palha e areia. Depois, amarravam o humanóide num poste e esperavam a noite cair para malhar o Judas. Numa ocasião, eles inovaram e encheram a barriga do boneco com bombinhas de São João e puxaram um pavio imenso para detonar o traidor de Cristo. Apesar da chama ter se apagado várias vezes, o efeito foi espetacular: foi pedaço de Judas para todos os lados! Armados de pedaços de pau e outros cacetes, a molecada atacou ferozmente os pequenos pedaços arremessados ao longe pela pólvora. Naquele ano, o Judas da Mariápolis foi o melhor do bairro.

Outra tradição da semana santa era o "Serra velho". Na quarta-feira de trevas, grupos de rapazes costumavam juntar-se às altas horas e escolhiam um idoso para agourar. Armados de latas, paravam na porta do velho escolhido e cantavam-lhe a morte, riscando o chão com as latas, num reco-reco lúgubre. Lá no Magano, o pessoal gostava muito de serrar velhos. A maioria dos velhos serrados ficavam muito aborrecidos, jogavam objetos e até penicos com mijo no cortejo. Uma ocasião, decidiram serrar seu Zezinho. Ele morava com a família na Satiro Ivo, já pegado com a casa do Padre, onde mantinha uma oficina que consertava sofás e poltronas. Pela madrugada, quando os meninos começaram a arranhar a calçada e fazer o testamento de seu Zezinho, o velho levantou-se e espiou pela janela. Acordou a mulher, abriu a porta, e quando os meninos já se preparavam para correr, livrando o ataque, o velho ligou a radiola, mandou vir as bebidas e o forró prosseguiu madrugada a dentro. Durante a semana, o velho divertia-se com a surpresa dos moços, que foram lhe agourar e acabaram num forró na calçada até as primeiras horas da manhã. Apesar de não haver participado, gostava de acordar no outro dia de manhã, e ouvir mamãe contar que o "vizinho seu fulano foi serrado". À reboque da novidade, sempre vinhas as ótimas histórias dos velórios nos sítios.

Penso que desta época ficaram apenas os espetáculos da Paixão de Cristo. Eu era doida para participar de anjo no espetáculo promovido pelo Centro Social Santa Terezinha. Mas, havia o impedimento da religião. E minha mãe não permitia que nos participássemos  nas ações do Centro com nome de Santa. Apesar do não já expresso, uma vez participei da multidão na chegada de Jesus a Jerusalém. Arranjei lá um galho de mato e fui atrás do ator montado num burrico. Neste espetáculo, em que a comunidade eram os atores, aconteceram coisas engraçadas. Uma vez, na hora da crucificação, cena máxima do espetáculo, um vento forte arrancou o paninho que cobria as vergonhas do Jesus, que ficou na cruz de cuecas zorba azul marinho. Só não foi pior do que aquele episódio que a cruz não aguentou com o peso do ator, e, no momento de maior emoção: pá! quebrou um dos braços, e o Jesus ficou com apenas um braço na horizontal e outro perpendicular ao corpo, enquanto a plateia gargalhava. Outra vez,  uma chuva forte acabou com a glória do exército romano, cuja vestimenta era de papel dourado. Num outro espetáculo, este mais recente, encenado na praça Guadalajara, na cena da tentação de Cristo, o Satanás fazia suas evoluções na praça, se contorcia e provocava a plateia. Num vacilo, o cão derrapou numa areinha e levou o maior baque, e uma vaia imensa dos espectadores indignados com a astúcia do príncipe das trevas, enquanto Jesus segurava o riso.  Mas, nada foi pior do que o caso do Judas do espetáculo, cujo auxiliar de cenografia fez um nó de forca muito bem feito. Enquanto o ator lutava para não morrer asfixiado de verdade, a plateia admirava-se com a sua atuação. A sorte foi que, já nos estertores da morte, o galho da árvore quebrou e o judas desabou na ribanceira, enquanto os espectadores deliravam com a realidade da cena. Coitado do ator, quase enforcado e todo arranhado por ter rolado ladeira abaixo. Tudo em nome da arte. Estes atores amadores realmente merecem nosso respeito. Já pensou a infelicidade de plantar a cruz no Gólgota ficcional, e acertar justo num formigueiro? O sangue que escorria do Jesus torturado e às portas da morte era uma mistura de catchup com suco de groselha, o que atraiu as formiguinhas. Na hora do "Pai, perdoa, eles não sabem o que fazem!" as formigas ferroavam o sofrido Jesus na cruz. 

Ultimamente, não temos ido aos espetáculos, mas Luiza já me cobra a experiência. Neste ano, quase não havia o "Jesus Alegria dos Homens", encenação da Paixão de Cristo em Garanhuns. Por falta de verba e incentivo, os produtores amadores arranjaram dinheiro já bem próximo do período da semana santa. Ainda assim, o espetáculo decorreu, arrastando um bom público para o Alto do Magano, localizado à 1.030 metros acima do nível do mar. Não fomos pois Lulu estava gripada, e o frio lá à noite é considerável. Fica para o ano que vem.

Espero que ninguém se ofenda com minhas lembranças. Nem me leve a mal pela camaradagem com Jesus e os Santos. Este registro fica em memória de Roberto Só, o Homem Luz, que sofreu um grave acidente de moto, indo para o Cristo do Magano, para fazer a iluminação do espetáculo. Desde o ano passado que foi iluminar a paixão dos anjos no céu.

Até amanhã, fiquem com Deus.

PS: Ainda hoje, logo que abri o Facebook, a amiga Maria Manuel partilhou essa fotografia da queima do Judas em Ílhavo, Portugal. Qualquer semelhança, não é mera coincidência, é tradição herdada dos patrícios portugueses!

Quem quiser saber mais sobre o serra velhos, pode começar acessando esse link http://agazetadigital.blogspot.com.br/2011/04/serra-velho.html Tem uma história ótima sobre Seu Nozinho, de Bom Conselho.

4 comentários:

  1. Eu adorei o seu comentário, a respeito da Semana Santa. Devo dizer q para mim hoje tanto faz se tem peixe ou n, eu até gosto mto dos frutos do mar, se tem eu gosto de comer. Quando vou a Recife meus almoços são sempre deles, sushis e afins, mas nada ligado à religião, acho é graça na galera q enche a cara de tudo e depois n pode comer carne. Algumas vezes já esqueci de pedir o peixe nas compras de semana santa quando trabalhava em fábrica, mas nada q n pudesse resolver...Quanto aos filmes da Paixão , já assisti mtos deles, hoje n faço mais questão, tenho pena do sofrimento...prefiro coisas mais lights. Gosto mesmo é do feriado, verdade seja dita, e quase uma semana em casa sim é maravilhoso...de todo jeito Boa Páscoa para todos e bjão Anninha!

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    1. Esquecer o peixe na fábrica é complicado, pois algumas pessoas tem mesmo restrições, e nós, respeitamos. Bom feriadão!

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  2. Eu gosto de assistir a Paixão de Cristo, seja no alto do Magano, na televisão onde passar. Acho que não custa nada tirar a semana pra pensar em Deus. Tem pessoas que levam isso muito a sério, e ficam felizes com isso. Gostei muito do seu post, Anninha, e só agora, depois de mais de 30 anos, é que fui saber que você burlou a segurança e conseguiu fazer papel de figurante na paixão! Eu sempre quis e nunca fui, você é mesmo uma danada! Beijos.

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