domingo, 2 de novembro de 2014

Leituras e reflexões: O anjo do quarto dia

Por hoje, prometo escrever pouco. Em parte, porque já são quase quatro da tarde. Depois, porque a casa está uma bagunça. Além disso, tenho tantos projetos para orientar que estou com medo de abrir a caixa de e-mail. Tenho certeza que eles irão pular em cima de mim, e daí, nem domingo, nem casa, nem almoço da semana. Ficará tudo por fazer. Preciso dizer que o meu sagrado sossego anda em risco. Há vizinhos novos na casa dos fundos, e, parece-me que são apreciadores do "arrocha". E isso é muito, muito ruim. Talvez estejamos mal acostumados em acordar com os passarinhos neste sítio tão calmo. Espero que seja coisa de feriado ou de domingo, assim, torna-se suportável. Talvez seja uma carraspana motivada pelo dia de finados. Vamos esperar para ver o que acontece. É por causa dessas criaturas que provavelmente tem dificuldades auditivas (ou cerebrais, pois a música é muito, muito ruim) que tenho vontade de ir morar nas brenhas. Já escrevi sobre vizinhos, e, apesar de, em linhas gerais, gostar dos meus, há pessoas que são tão sem noção que não percebem que invadem o espaço alheio com seus excessos. Como diria minha amiga Kátia, "Deus tome de conta".

No livro de Gilvan Lemos, a personagem Ana foi morar nas lonjuras por causa da tristeza. Teve arrancado pela família tradicional o amor do rapaz "de cor" e o filho que carregava. Sem encantos pela vida, exilou-se nos grotões. Até aquela noite de tempestade em que bateu-lhe à porta um homem. Veio, ficou por poucas horas, e às primeiras alvas da manhã, se foi. Com ela, ficou apenas a impressão que estava doida, que o estranho que deitara na sua cama resultava apenas de sua solidão. Mas, o homem deixara-lhe um fruto. O anjo. Há pessoas que passam pelas nossas vidas e deixam impressões indeléveis, mesmo que sejam por rápidas passagens. Depois, passamos tempos a pensar no que foi feito daquela criatura. Ana optou por calar. Criou o menino escondido, e quase ninguém sabia de sua existência. 

Mas, a história tem outros vieses. Narra a trajetória de pobreza extrema, ascensão e poder de Orico Rezende. Numa pequena cidade do interior, um homem enfrenta a vida, saindo de uma condição de penúria para se tornar o chefe político e religioso de uma pequena cidade. Entremeando a literatura fantástica com as vivências do interior pernambucano, Gilvan Lemos desenha uma sociedade dominada pela força de Oricão. É uma personagem fascinante pela riqueza de detalhes e pelas características que nos faz recordar de qualquer coronel político dessas paragens: conserva o poder à força, até mesmo na bala. Mas, o tempo, o mais democrático dos senhores passa para todos, e a velhice expõe as fragilidades do ser humano, que nunca será máquina. Nada dura para sempre. Tudo cumpre seu ciclo e um dia, se renova. Ou se extingue, conforme expõe o autor: "a morte dói nos vivos, a presença da morte subverte todos os sentimentos, a gente fica sem noção diante da morte, respeitando a pessoa que tenha sido menos respeitável, perdoando o que foi imperdoável, a morte apaga tudo, faz com que tudo pare: diante da morte até um espirro soa desrespeitoso" (p. 124). Talvez seja por esse sentimento de impotência que mortos andam a ganhar eleições, como ocorreu ainda outro dia. E é a impotência diante do imponderável que confronta Oricão com sua humanidade e seus fracassos, apesar de todo o poder que detém sobre a cidade e sobre a vida das pessoas. A iminência da morte reduz as coisas ao que realmente elas são. Se para Oricão o juízo final era a usurpação de sua linhagem, para a tia Mé, era a falta de homem. Em toda cidade pequena, sempre há um par de tias velhas que mantiveram-se solteiras ao longo da vida. E estas, Mé e Zu, viviam sempre em guerra entre si com os hábitos e manias de 'moças velhas caritozeiras'. Num trecho do livro, Mé, postada na janela, reflete olhando o movimento de mais um final de tarde, de tantas tarde iguais:

"Que viviam desamparadas de homem, sim; que um homem fazia falta, idem. Não apenas para espantar tarados ou armar tiroteios no quarto. Um homem! Um homem! Um homem com todos os seus atributos. Virgem, que artigo difícil. Ora, que estava naquela idade e ainda pensava em homem? Pensava, ora que coisa, nunca deixara de pensar, que mulher viver é pra isso mesmo, pra pensar em homem e em homens. Quando não o tem, pensa nele, e não deixa de pensar enquanto não o tem." (p.138) 

A lógica simplista de Mé, maldizendo sua sorte de solteirona, expõe um outro lado da perda: é a ausência da oportunidade de não obter o que se desejou. Se a sorte não lhe sorriu, maldizia a irmã Zu, que teve pretendentes, mas que desdenhou-os por motivos, para ela, irrisórios. Para Mé, era absurdo rejeitar um casamento só porque o sujeito era "chegadinho na cor" (para não dizer negro) ou porque tinha o hábito de comer feijão frio à noite. Às vezes, é preciso ter a chance de "se desgraçar" para seguir em frente. O pior arrependimento é do que não foi feito. Mas, isso já sou eu a falar.

A prosa de Gilvan Lemos é deliciosa. Natural de São Bento do Una, tive o prazer assistir uma palestra do escritor no 2º FIG (isso já vai no 25!), e nunca mais deixei de lado a oportunidade de ler seus romances. A linguagem regionalista tempera as histórias bem costuradas. O anjo do Quarto dia é um livro que não termina: depois que começa a morrer gente, começamos a ter expectativas de como tudo aquilo irá acabar. Como nos contos de Nivaldo Tenório, não há final do autor. Se o leitor quiser, que invente quantos achar necessários. O que faz todo sentido, porque se o anjo é a morte, esta nunca para de trabalhar.

Façamos, enquanto há vida.

Até amanhã, fiquem com Deus.

3 comentários:

  1. Excelente resenha, Anna, é sutil, diz só o necessário e cumpre o papel de despertar o interesse do leitor para o livro. Eu ainda não li esse livro do Gilvan, e acho que nem tenho tempo mais para o Gilvan, a pilha de livros que quase chega ao teto, desdenha da minha miséria de ser homem e como tal, limitado no tempo.

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    1. Obrigada, Nivaldo. Mas, o escritor aqui é você. Sou sua fã. Beijinhos.

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  2. ótimo, Anninha. Dá vontade de ler. Me empresta, visse? Beijos.

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