"O que é a liberdade? Somos realmente livres?"
Me lembro muito desse começo da aula de Sociologia com a professora Eliane. Sempre começava as aulas questionando as nossas certezas e a partir das nossas respostas, alinhavava nossos argumentos com os conceitos de Durkheim. Às vezes brigávamos feio: não é nada fácil reconhecer que está errado quando se tem vinte e poucos anos. A certeza da juventude é prima-irmã da intransigência. Com o tempo, percebemos que frequentemente estamos mais errados do que certos, e fica mais fácil mudar. Aprendendo uma coisa por dia, não nos tornamos sábios, conseguimos apenas encontrar um meio mais flexível de ser.
Me lembro muito desse começo da aula de Sociologia com a professora Eliane. Sempre começava as aulas questionando as nossas certezas e a partir das nossas respostas, alinhavava nossos argumentos com os conceitos de Durkheim. Às vezes brigávamos feio: não é nada fácil reconhecer que está errado quando se tem vinte e poucos anos. A certeza da juventude é prima-irmã da intransigência. Com o tempo, percebemos que frequentemente estamos mais errados do que certos, e fica mais fácil mudar. Aprendendo uma coisa por dia, não nos tornamos sábios, conseguimos apenas encontrar um meio mais flexível de ser.
Em julho, no auge do inverninho de Garanhuns, Ilma me emprestou esse livro, um tijolão verde de umas quatrocentas e tantas páginas, editado pela Companhia das Letras. Na primeira página, uma dedicatória carinhosa escrita a esferográfica com a letra perfeita de Ilza. Nem precisava assinar: aquela letra linda reconheço em qualquer lugar. E já tentei até imitar, mas as minhas habilidades caligráficas são muito limitadas. Além disso, quanto mais se estuda, mais desgraçada se torna a grafia. Em quase dois anos, era o primeiro livro escrito em português do Brasil que caia nas minhas mãos. Pode até soar afetado, mas, nos primeiros capítulos, estranhei. No dia anterior havia terminado de ler "Ensaio sobre a Cegueira", que levei no meu farnéu de literatura portuguesa e cuja leitura ainda estou processando. Afinal, o que é que eu posso escrever sobre José Saramago que não seja insignificante? Adiei essa reflexão. Também tenho direito ao meu quinhão de covardia. Pronto, então, me embrenhei no livro da Doctora. Conhecemos a Ingrid Betancout através dos noticiários de TV. Ela foi sequestrada pelas FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) em Fevereiro de 2002. Seria apenas mais um sequestro realizado pela guerrilha paramilitar, se a personalidade não fosse uma senadora, em plena campanha para a Presidência da Colômbia. Me lembro particularmente o que pensei numa dessas reportagens narradas por Zeca Camargo, no Fantástico, apresentando mais uma prova de vida da senadora, que aparecia sentada num banquinho no meio da selva amazônica, com um vestido branco e o cabelo longo trançado... e com uma corrente no pescoço. Impiedosamente, pensei: "essa mulher já está morta há muito tempo... Tá até com cara de santa".
Comecei a ler o livro autobiográfico, já sabendo do final: ela e os companheiros foram resgatados pelo exército colombiano no dia 02 de junho de 2008, alcançando a incrível façanha de sobreviver ao cativeiro durante quase sete anos. No quentinho da minha cama, devorava a narrativa traduzida do francês para o português de uma das mulheres mais fortes e mais firme em seus princípios que eu já tive oportunidade de conhecer através dos livros. Nas suas reflexões, ela revive o sofrimento de ficar presa na maior floresta do mundo, um inferno verde, longe da família, dos amigos, perdendo de acompanhar o crescimento dos filhos. As reflexões de Betancourt são profundas: "Eu tinha aprendido que na selva não se ganha nada em agir sob o domínio do primeiro impulso. O mundo onde eu caíra prisioneira era o do arbitrário." (p. 137) Planejando cada fuga, acreditando sempre na possibilidade de escapar de seus algozes, a Doctora (como era tratada pelos guerrilheiros) enfrentou frio, chuva, fome, insetos e animais da floresta, bem como a fúria do animal humano, que em nome da ideologia, se acha no direito de aprisionar, torturar e matar seres humanos, somente por divergência de pensamento. Ideologia não se sustenta no pisoteio as botas e no cano da metralhadora.
Mesmo num ambiente tão hostil, embrenhados no inferno verde dominado pela guerrilha, a autora consegue construir um relato humano das relações sociais vivenciadas nos acampamentos das FARC. Os guerrilheiros são jovens pobres e sem esperança, que viram na estrutura organizacional extremamente hierarquizada da revolução a única alternativa para fugir da pobreza. A sua relação com os guerrilheiros, às vezes até respeitosa, é relatada num trecho do livro, quando a Doctora decide aprender a trançar os cintos que os revolucionários usavam, um tipo de artesanato especifico da guerrilha. Consegue com o chefe permissão para sentar-se à tarde para aprender essa arte com um jovem fortemente armado, que pacientemente ensina a senadora a trançar os mais belos cintos do acampamento. Num dos ataques do exército, esse jovem morre. Sobre isso, Betancourt reflete: "Descobri que o que os outros tem de mais precioso a nos oferecer é o tempo, ao qual a morte dá o seu real valor" (p. 139) Mesmo na vivência com seus inimigos, ela consegue perceber nuanças de humanidade.
Não sei se eu aguentaria um mês. Ela suportou quase sete anos. A sua força vinha do amor da mãe, que nunca desistiu de liberta-la. Ouviam no rádio os depoimentos emocionados dos familiares que tentavam politicamente condições para reaver seus filhos, irmãos, pais, tios. Para sobreviver, era preciso continuar lutando, dia após dia. Na página 491, reflete acerca dos apóstolos de Jesus:
"Os apóstolos sentiram medo e somente João se fez presente ao pé da cruz. Mas, depois da ressurreição, o comportamento deles mudou. Saíram pelo mundo e acabaram sendo mortos ao relatar o que tinham visto. Foram decapitados, crucificados, esfolados vivos, apedrejados por defender a sua história. Cada um deles soube se superar, vencer o medo de morrer. Cada um deles escolheu aquilo que queria ser."
Uma enciclopédia e uma Bíblia foram os suportes para que Ingrid Betancourt continuasse vivendo a cada dia. Ao ser resgatada soube valorizar a importância de uma casa de banho com porta e interruptor de luz, após quase 7 anos a usar o chontos. E eu, lá no quente no meu edredom, li o livro a lembrar da professora de Sociologia, com um sorriso divertido, a nos provocar: "Você é realmente livre?"
Quais são as correntes invisíveis que nos prende no nosso inferno pessoal?
Até amanhã, fiquem com Deus.
Uma enciclopédia e uma Bíblia foram os suportes para que Ingrid Betancourt continuasse vivendo a cada dia. Ao ser resgatada soube valorizar a importância de uma casa de banho com porta e interruptor de luz, após quase 7 anos a usar o chontos. E eu, lá no quente no meu edredom, li o livro a lembrar da professora de Sociologia, com um sorriso divertido, a nos provocar: "Você é realmente livre?"
Quais são as correntes invisíveis que nos prende no nosso inferno pessoal?
Até amanhã, fiquem com Deus.
escreve-se farnel, não farnéu. quanto ao resto, tem um bom teor literário.
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