sábado, 27 de abril de 2013

Lisboa não é a cidade perfeita

Lisboa e o Tejo, vistos do Castelo de S. Jorge. Foto de Tony Neto
Parece-me que, finalmente, a primavera chegou. Com ela as novas vestes das árvores do nosso caminho, o solzinho morno ao meio dia, o céu azul pronfundo sem nuvens que só Portugal sabe fazer. E o vento aveirense desgrenhando cabelos e semeando arrependimentos pela escolha do agasalho.

Nestes últimos meses em Portugal, Ricardo Reis tem sido minha companhia constante e a medida do possível. Estabelecemos, eu e o senhor doutor orientador que deixaria aqui uma versão provisória da tese para correção, e, pelo que vejo, ainda falta-me tanto! De forma que ando numa correia de dados em horas e horas de mesa-cadeira-computador. Então, nos intervalinhos e com a saudável desculpa de não ficar (mais) doida, leio umas páginas da obra do Velho (José Saramago) "O ano da morte de Ricardo Reis". Comprei-o no Carnaval, pois a chuva, o frio e a falta de numerário nos impediu de fazer passeios. O livro de capa amarela aguardou pacientemente na fila que consumiu-se aos poucos. Chegou em mim, enquanto Ricaro Reis chegava a uma Lisboa chuvosa à bordo do Adamastor, desembarcando sob a chuva fininha e o vento fustigante na foz do Tejo.
 
A ideia do Velho é algo genial. Logicamente, ninguém é agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura cuja a obra não seja menos que isso. O enredo é sobre a vida secreta do médico portuense, radicado por anos no Brasil. Ricardo reis é um dos heterônimos de Fernando Pessoa. Além de ser um passeio pela obra do poeta maior da língua portuguesa (desculpa, Camões!) é um retorno a Lisboa com olhos de quem a deixou por dezasseis anos (acho bonitinho o jeito que os portugueses pronunciam o dezesseis e o dezenove: dezasseis e dezanove, e leva a mesma grafia). Sem coincidências, a Lisboa de Ricardo Reis é a mesma que perambulamos: O Rossio, a Praça da Figueira, a Sé, as ruínas do Carmo, o Chiado. O terreiro do Paço, as margens do Tejo. Nunca me perdi na Lisboa antiga, e ando por lá de olhos fechados. Simplesmente, quando estou procurando algum lugar, acho que é por ali, e pronto. Perguntamos para tirar as dúvidas e gastamos muitas calçadas, mas acaba chegando. Não sei porque. Somente é. Apesar de atulhada de vagabundos, carteiristas e imigrantes de mau aspecto, não me intimida, nem faz medo. Essas calçadas de muitos passos já tinha meus pés gravados antes de vir aqui.
 
Lisboa não é a cidade perfeita. E é o título de um fado de Deolinda. Mês passado, quando voltávamos do Alentejo, não resisti e resolvemos, mesmo de última hora, pernoitar na capital portuguesa. Da estação de Sete Rios, pegamos o metro. Aquilo lá está muito mudado, quando estive cá em 2005, a integração dos comboios, autocarros e metro estava em construção ou reforma, não sei bem. Descemos nos Restauradores e passamos pela estação do Rossio. Ainda elegante, como uma senhora idosa, essa estação de comboios é constantemente referida nos livros que leio. Entramos na rua escondida por trás do Rossio, onde os restaurantes são mais baratos. Passamos na frente de uma loja do Pingo Doce e mais à frente encontramos a uma pensão gerida por uma família de indianos. Mesmo em um português precário, o atendimento é bom, a casa é limpa e as camas, confortáveis. Misturando inglês e portugues nos entendemos e fizemos negócios. Deixamos nossas coisas e fomos almoçar na Augusta. O Pórtico está em reforma e num restaurante espanhol Bruno e Marrone se esgoelavam a hora do almoço. Escolhemos uma mesinha sob um guarda sol verde. Um vento gelado encasacados, só os nórdicos tem couro para aguentar esse solzinho de geladeira em maguinhas e a beber cerveja. Enquanto trincava o meu bacalhau, servido pelo Sr. António, o simpático atendente de mesas que cantou parabéns na TV, eu olhava as pessoas. Mais turistas que locais, para alguns a crise econômica não é tão profunda assim. A maior parte dos turistas são de meia idade ou de idade completa. Observarvamos isso lá na pousada que ficamos em Évora. Pelas caras, a média de idade dos hóspedes era de 60 e alguns. O boy da turma aparentava uns 65. Com um desconto, pois os brancos sofrem mais as intempéries, e tirando meu exagero, era mais ou menos isso. Terceira idade não fica encarcerada em casa. A reforma custeia mais que os remédios para pressão alta ou diabetes. Os filhos já lhes deram netos, e o mundo é grande. E com o destino a favor, enquanto eu e Luiza calculávamos a idade deles, eles nos olhava como fossemos micos de circo, entre nossas risadas na sala do pequeno almoço. Não preciso dizer que Luiza deu escândalo quando viu uma mosca sobre a mesa. Vá lá, isso é absolutamente incomum nestas bandas.   
 
Na capital, os sinais da crise são mais evidentes que no interior. Vimos uma Lisboa mais suja, mas ainda sem cara do Recife. Os moços bem arrumados a passear desfarçadamente não nos enganam mais: são os carteiristas. Os trombadinhas de cá são jovens bem apanhados, que enganam os turistas e levam os pertences de quem é muito distraído. Há polícia dentro do supermercado, pois, no caso de um furto descoberto, não se dão o trabalho de chamar a polícia: o homem da lei já toma as providências. Os alarmes tocam mais e o preconceito é evidente. Não me surpreendeu que o casal negro retinto que estava a minha frente fosse retido pelo alarme eletrônico à saída dos caixas. O policial veio, pediu para ver a bolsa da senhora. Ela, com toda naturalidade do mundo abriu a bolsa sobre o olhar constrangido da atendente. Tirou uma série de objetos pessoais e nada da loja. Luiza acompanhava tudo com olhos de pânico. A mulher nem se abalou, aparentemente acostumada com a incerta. Diante do meu pasmo, o policial ainda desculpou-se comigo: "Infelizmente, precisamos verificar se há algo irregular". Enquanto isso, o casal verificado nem se incomodava e seguia o seu caminho.
 
As pessoas se habituam a tudo. Mesmo num mundo cada vez pior, "ainda bem que o Tejo é lilás" e me atrai para essas margens de estuário nas horas de sol. Nas palavras do Velho, "aos deuses peço só que me concedam o nada lhes pedir" (p. 43), nem para cá voltar. Lisboa, desde sempre, foi o meu caminho. 
 
Deixo-lhes o fado, na voz afinadíssima da Ana Bacalhau e os Deolinda. 
 
Até amanhã, fiquem com Deus.    

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