173 dias

Na verdade, estou por demais envolvida com a minha vida. Há um verso do Mário Quintana, que diz:

"DOS NOSSOS MALES 

A nós bastem nossos próprios ais,

Que a ninguém sua cruz é pequenina.

Por pior que seja a situação da China,

Os nossos calos doem muito mais...

Reconhecendo o egoísmo intrínseco à condição humana, dou à volta às expectativas e sobre as manifestações que decorreram ao longo destas duas semanas no Brasil, refiro-me depois. Nem pensem que as multidões nas ruas clamando por justiça e ética não me comoveram. Fiquei sitiada entre dois sentimentos: a pena de não ter participado diretamente e a indignação contra uma situação que tem a capacidade de manter-se ao longo dos anos. É certo que melhoramos, mas quando comparo com a qualidade de vida que temos cá, mesmo na Europa rasgada pela crise, sinto por nos faltar ainda tanto.  Prometo-vos que volto ao tema, mas agora, não me caibo em mim. Extrapolei. E quem me conhece, no real ou no virtual sabe que, como um alcoolico, tento dominar em mim o exagero. Mas, felicidade transborda e meu sorriso impregna as palavras. Faço jus ao ditado popular da minha terra: "A boca só fala o que o coração está cheio".

Passaram-se  dias. E nos finais friorentos de dezembro, punha os olhos tristes no calendário. Aqueles quase seis meses seriam de muito trabalho e de "mim comigo". Corroborando a previsão, veio muita chuva pelos passeios aveirenses pelo mesmo caminho: casa-escola-casa. Entre atividades acadêmicas, pausas corridas para as atribuições domésticas e ocupações lúdicas de finais de semana. No calendário junto à mesa, íamos riscando os dias, presidiárias dos nossos compromissos. Na reta final, é preciso ter muita vontade, pois o cansaço físico e mental vão minando a confiança e levantar da cama para encarar a quase constante chuva desses meses foi por muitas vezes, uma superação.

Nestas 4152 horas, o inverno esteve condizente. As águas de abril gostaram tanto dos nossos dias, que deixou-se ficar até finais de maio. Em inícios de junho, nevava nas terras altas e a chuva fininha transformou toda a primavera em mais uma pequena amostra outonal.  Apesar de verão, o calorão que merece dos portugueses o dito: "nove meses de inverno, três meses de inferno", ainda não se fez presente, e, o ventinho frioso ainda nos rodeia. Enquanto eu escrevia mais uma página, a construir ideias, Luiza conjuga verbos, extraia percentuais, fazia intermináveis contas de dividir por 3 algarismos. Quando acertávamos, fazíamos festinhas: valorizamos as pequenas vitórias cotidianas, os obstáculos superados, os prazos cumpridos. E fomos nos reinventando ao aprender uma coisa nova por dia.

249.120 minutos foram suportados por contatos diários através de conexões nem sempre boas. Pequenos problemas de saúde foram estrategicamente escondidos para não preocupar quem estar do outro lado. Driblamos o câmbio e o fisco, sem burlar a lei. Ajustamos  relógios em dois fusos e dois hemisférios. Através da tecnologia, contamos mutuamente o cotidiano, fizemos aniversário de cão,  trocamos insossos beijos via Skype. Passou.

O que se faz em 173 dias? Quanto tempo temos? No começo, eu pensava que seria tão rápido que tomei a providência de reproduzir as fitas K7, no egoísmo de preservar uma parte boa de nós dois. Com o tempo, a tecnologia provou-se superada, e nós continuamos. E 23 anos depois, já na segunda metade de nossas vidas, ele me enternece ao me trazer um vestido, por me chamar de "minha branca", por ter tanta paciência com as minhas pequenas (e constantes) excentricidades e simplesmente voltar a dormir na cama confortável desse pequeno quarto de hotel lisboeta, onde esgotou-se toda esta espera.

Até amanhã, fiquem com Deus.