Outro dia, pela manhã, antes das 8 horas, Ornilo chegou na porta e perguntou-me à queima roupa: "Caríssima, como vem sendo esse seu retorno ao Brasil? Imagino quanta diferença você deve estar sentido!" Mal tive tempo de levantar os olhos da tela do João (o meu pequeno computador, lembram-se dele? É nele que venho trabalhando desde a volta!), e encarar o colega de trabalho que ocupava toda a altura da porta. Ele deve ter visto algo bem desagradável para me fazer essa pergunta a estas horas da manhã. E nestes primeiros meses de retorno, as pessoas tem me perguntado com grande frequencia sobre as diferenças de vida entre o nordeste do Brasil e o extremo oeste da Europa. Algumas pessoas imprimem no tom de voz uma certa reprovação: "Como tivesse coragem de voltar para cá?" Engraçado, são basicamente as mesmas pessoas que há dois anos e um bocadinho me perguntavam como era que eu tinha coragem de sair arrastando uma menina, deixando marido, família e trabalho para estudar na Europa. O ser humano é naturalmente contraditório. A comparação entre a vida que vivemos cá e lá é inevitável, e entendo que as pessoas sintam curiosidade em conhecer minhas impressões. É também por isso que registro neste espaço esse nosso cotidiano em comum.
Pensar o Brasil não é tarefa simples. A diversidade, a multiculturalidade, a desigualdade tornam o Brasil uma nação complexa, cuja tessitura social é um imbricado de permissividades e preconceitos. Naturalmente contraditório, o Brasil é uma miríade em que se confundem prosperidade e pobreza, amabilidade e violência, trabalho duro e carnaval. Estudiosos como Fernando Henrique Cardoso, Celso Furtado e Sérgio Buarque contribuíram com suas obras (e ainda contribui o FHC pois, apesar de ter pedido para que esquecessemos tudo que ele escreveu, a obra imortaliza o autor, e, ele ainda é vivo!) para compreendermos melhor o Brasil. Notadamente, o meu autor preferido é o Darcy Ribeiro, cujo trabalho rendeu a análise da formação do povo brasileiro. Este investigador-educador analisou de uma ótica particular as contradições brasileiras, trabalhando duro à bordo de sua rede bem estendida à beira mar.Talvez o documentário liricamente narrado por Maria Bethania traduza o caráter deste autor como um protótipo do investigador brasileiro: trabalho duro, concentrado e criteorioso, mas a beira-mar, regado à água de coco, faz favor!
Logo que chegamos à Portugal, quando alguém nos conduzia a qualificar e comparar a vida entre os dois países irmãos, aprendi com Francislê uma resposta padrão: "Há coisas boas nos dois lugares. Há coisas boas e ruins no Brasil. E em Portugal, é bem assim. Da mesma forma que deve ser em Quebec, onde mora o amigo virtual Sidclay. E em Buenos Aires também, onde estudam Paula e Geraldinho. E na Bolívia, para onde foi a Norma estudar medicina. E na China e no Thaiti, onde não conheço ninguém. As coisas ruins do Brasil estão à olhos nus, vendem jornais, rendem audiência. No Brasil, me entristece a sujeira das ruas e aquela moral distorcida de jogar o papel no chão para manter o emprego do gari. Me enerva a poluição sonora que domina os espaços públicos, numa cacofonia de músicas de baixíssima qualidade. Quem escuta "Doblô, Doblô, o carro do amor..." pode até imaginar que a nossa música é só isso. Felizmente, o mundo reconhece nossos valores musicais, enquanto consumimos o lixo sonoro produzido em larga escala. Entretanto, protestamos nas ruas contra tudo sob um céu azul de um verão que dura 10 meses. Somente quem sentiu saudades do sol em dias corridos de temperatura negativa e céu gris, entenderá o que digo. A opinião pública brasileira tem uma dinâmica muito peculiar, que hipervaloriza as coisas miúdas e é cega para o que é realmente relevante. A semana passada na nossa pequena Garanhuns começamos a vender vento para produção de energia eólica, numa transação de quase um bilhão de reais com capital estrangeiro. Enquanto isso, os munícipes que supostamente formam a massa crítica local discutem se pode ou não vender "churrasco de gato" e "milho cozido" em via pública. É a miopia do cotidiano e o apego à coisas pequenas. Não estou a discutir o direito ao trabalho autônomo, mas, por favor, os gigantes da energia eólica precisam de maior atenção, afinal, os royalties do vento que Deus concede de graça, como serão revertidos em benefícios para a população?
Para melhorar, o nosso povo precisa redefinir prioridades. E isto não significa a renúncia ao carnaval ou abdicar do feriadão. Precisamos nos olhar a nós mesmos, sem olhar somente para a graça ou o defeito de bundas e peitos, mas sim, olhar para o Brasil enquanto brasileiro, valorizar o que há de bom e melhorar no que não vai tão bem. Nem ufanista, nem nacional-niilista. Talvez melhor sejamos operários esperançosos em concretizar um projeto de um país mais justo, e por isso mesmo, mais feliz.
Reflexão de 7 de Setembro, com a família, sob os coqueirais alagoanos, degustando uma saborosa tapioca. Assim é mais fácil acreditar que a transformação social do Brasil é possível.
Até manhã, fiquem com Deus.
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