Leitura é um hábito que tenho de antigos carnavais. Talvez porque houve um tempo que lá em casa não tinha televisão, só um rádio azul à pilhas que Ilda ouvia as rádios mais exóticas. Lembro como hoje, que nas noites de inverno, ela ficava na cama, enrolada com um conjunto de forros e cobertores, escrevendo alguma coisa e ouvindo "O cantinho do Chifre". Nem me lembro em que Emissora era, mas tinha uma música que até aprendi, e recordo um trecho, quase ouvindo a voz do cantor brega:
"Ele guarda com carinhos os chifrinhos,
Os branquinhos não exibe pra ninguém,
Os verdinhos, amarelos, vermelhinhos,
São coisa que exibem muito beeeeeem"
Pronto. Como antigamente os invernos eram mais frios e muito mais longos, não existia internet. não tínhamos televisão e, principalmente, depois do acidente de Vilma, que acabou me envelhecendo antes do tempo, eu passei a ler tudo que aparecia. Era uma briga eterna com Ilza, pois, quando ela ia ao trabalho, eu pegava o livro que ela estava lendo, e nem sempre me lembrava de devolver certinho, no mesmo lugar. Ler me faz bem. E sempre, por mais atarefada que esteja, tenho que ler alguma coisa que seja "de lazer", como diria a Profa. Izabel Alarcão. Nestes tempos de adaptação li muita coisa, mesmo que fosse uma paginazinha por dia, ou melhor, noite. Forma-se uma fila de leituras, mas, as poucos, vamos dando cabo aos livros e sempre aparecem outros.
Esta semana acabei de ler "Fim", da Fernanda Torres. O acesso a essa obra foi uma série de acasos. Conhecemos a Fernanda desde sempre da TV. Às vezes penso que ela tem quase 80 anos, de tanto que já a vi em novelas, seriados, filmes e, até em programas de entrevistas. Mas, depois lembro que a Fernanda que está pelos 80 anos é a mãe dela, a outra Fernanda, a Montenegro. É o mal de começar cedo na TV: perdemos a noção da vida alheia. Outro dia, estava olhando os canais e parei um bocadinho no programa da Bela (Bela Cozinha, no GNT). Acho as comidas da Bela muito estranhas, mas gosto das explicações que ela dá acerca dos nutrientes e das misturas. Neste dia, a convidada era a Fernanda Torres, e no final, enquanto provava uma gororoba qualquer, ela presenteou a natu-cheff com um livro. Pensei: "Ei, que massa. A Fernanda escreveu um livro." Passou. Acho que no final do ano, estava de bobeira novamente, e parei num programa com a Fernanda. Mais uma vez no GNT, ela entrevistava Manuela Carneiro da Cunha, uma antropóloga que eu sempre li, mas nunca tinha visto. Nunca mais vi o "Minha estupidez", mas quando entrei na Saraiva para comprar o material de Lulis no início do ano, fui diretinho a uma atendente e perguntei se tinha o livro. Comprei. Foi para a fila e três meses depois, chegou a hora.
A obra narra a história de cinco amigos que viviam no Rio de Janeiro. A cidade, que dize-la maravilhosa é clichê, é cenário para a narrativa, desenrolada no trecho Ipanema-Leblon, com uma pequena passagem pela Lapa e Catete. De saída, já me ganhou porque foi justamente o trecho que visitamos quando estivemos no Rio, em Agosto de 2016. De início, pensei que o livro era história da morte dos personagens (morrem quase todos, parece coisa de Ariano Suassuna). Na verdade, a narrativa parte da morte dos personagens, mas a escritora aproveita a morte para contar a vida de cada um deles, que mesmo sendo amigos por muitos anos, compartilhando de vários momentos, têm trajetórias absolutamente diferentes. No início de cada capítulo, tem o ano de nascimento e morte de cada personagem. A medida que um morre, e os outros vão (ou não) ao seu velório, um deles é o próximo a ser abordado, a partir da própria morte. Não sei se expliquei bem - e sem spoiler - mas, a estrutura do livro é genial. No começo me choquei um pouco com a linguagem quase chula, fiquei até pensando: "quem essa menina pensa que é para tentar escrever como o João Ubaldo"? Do meio pro final, não sei se houve um refinamento da estrutura do texto (segundo os entendidos, o texto amadurece a medida em que é redigido), ou se a linguagem de rua se naturalizou na crueza do relato. Sei que a história prende o leitor a ponto de pensarmos no livro mesmo quando não estamos com ele nas mãos.
No final, fechei o livro pensando: "é uma história sobre a vida". Na vida que levamos, das opções que fazemos, do confronto com nossas fragilidades. Cada leitor pode se identificar com aspectos dos personagens, mas, dificilmente se enxergar na íntegra em algum deles, de tão diversos que são. Fernanda trata da vida a partir do fim e constrói um trecho digno de cena de cinema, aquele em que o Padre Graça, exausto de tanta exéquias, para à porta do velório e diz, em alto e bom som: "Quem será o próximo?"
Fiquem com Deus.
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