domingo, 2 de fevereiro de 2014

Leituras e reflexões: Se fosse fácil era para os outros

Estão se esgotando as provisões do meu alforje literário trazido de Portugal. Já penso que deveria ter me organizado melhor para ter trazido mais umas coisinhas. Afinal, temos imensa dificuldade de encontrar os autores portugueses em nossas estantes, principalmente em Garanhuns, que gaba-se de ser uma cidade cultural, mas que dispõe de apenas uma única livraria. É uma vergonha. A Casa Café resiste entre capuccinos, espressos (lá no menu da cafeteria explica porque esse escreve-se com 's'. Vá lá saber, aproveite e compre um livro e tome um café!), cariocas  e bolachinhas, oferecendo-nos algumas opções de boa leitura, embora predominem os títulos traduzidos da literatura comercial norte americana e outros best sellers. É justificado, pois, o comerciante tem que sobreviver. Uma pena que a nossa literatura lusófona não seja uma opção rentável para o bravo comerciante  das letras. Mas, não se pode ter tudo. Quando regressar a  Portugal, retornarei com uma mala só para os novos livros. 

Após sete meses de retorno, frequentemente me perguntam se tenho saudades de Portugal. Respondo com um sorriso que sim,  mas que é uma saudade boa, de quem tem certeza que irá voltar, mas não só por compromissos. Voltaremos por amizade. Sinto saudades das andanças sabatinas pelas livrarias. Passávamos um bom tempo a vasculhar as novidades nas livrarias aveirenses, portuenses e lisboetas. Numa dessas caminhadas, enquanto fugíamos de uma manifestação na Rua de Santa Catarina, no Porto, entramos na FNAC, impelidos pela multidão. Ao sair, levamos um estojo com carimbos de gatos e este livro. Me chamou atenção, pois, o mapa me pareceu familiar, devido a minha formação de base. Depois, porque o título era bem o que estávamos vivendo: fácil mesmo, só para os outros. Como diria Djavan "Só eu sei as esquinas por que passei..."

Então, fui convidada à leitura da obra de Rui Cardoso Martins pela capa e pelo título. Este novo autor de tem sido muito premiado nos inúmeros eventos de incentivo à literatura lá na terra de Camões. Talvez seja este um fator impulsionador para o surgimento de novos e promissores autores. Nem só de Eça de Queirós ou de José Saramago vive a literatura portuguesa, embora esses caras sejam eternos. Há sempre gente nova produzindo, publicando,  aparecendo. É animador. Pronto, então, comprei o livro e coloquei-o na fila. Li-o em meados de outubro, quando o tempo já esquentava. A história desenvolve-se na aventura de quatro amigos que decidem fazer uma viagem pelos Estados Unidos. Cada um tem o seu motivo para empreender a visita. O narrador e protagonista da ação, por exemplo, decide viajar numa tentativa de superar a morte da mulher amada. Afasta-se para fugir da dolorosa obrigação de contactar administradoras de cartão de crédito e de telefonia móvel para cancelar os contratos da esposa morta. Assim, junta o saldo da conta conjunta e da conta pessoal da mulher com o limite dos cartões de crédito e compra uma passagem para os EUA. Na companhia dos amigos, tenta reencontrar uma razão para continuar a viver.

O roteiro que escolhem passa longe do convencional: um bar irlandês em Nova Iorque, uma execução de condenado à pena de morte na Georgia. Apesar de declarar que "os verdadeiros amigos são um público ingrato no caso de ridículo" (p. 56), o cinco homens vão apresentando suas desilusões e  descaminhos, cada um expondo cruamente sua humanidade. Discutem a segregação racial, um traço terrível da cultura norte americana, ainda sobrevivente nos estados do sul. Segundo o autor, tradicionalmente ensinavam "que os bebés brancos vinham trazidos pela cegonha mas os bebés negros nasciam de ovos de abutre e ela acreditavam" (p. 92). E bem lá no fundo, alguns ainda acreditam e se mortificam que o Presidente seja um negro republicano com nome árabe. Provavelmente vejam nisso um  sinal do fim dos tempos.

Já em Key West, regado a muita tequila e mescal, discutem o perigo de estar vivo. E para mim, foi o trecho mais significativo da leitura:          

"Perigo de morte é estar sentado num jacuzzi ao ar livre, com meus companheiros de viagem, sabe-se lá o que pode vir de repente do céu, um satélite russo em pedaços, uma sonda que não chegou a Marte porque teve saudades da terra, há a gravidade e algo está sempre a cair. perigo de morte é cheirar uma flor ou passear na calçada.A flor pode ser venenosa ou ter  escondida nas pétalas uma abelha assassina a  que somos alérgicos, a calçada pode abrir-se e engolir-nos num dia de chuva,ou cai uma varanda de um prédio porque uma velhota foi regar as flores, ou um carro na estrada despista-se para o nosso lado. Perigo de morte é a gente apaixonar-se à primeira vista por uma mulher linda, uma lasca de três assobios, atrás dela vem um homem armado. Perigo de morte é a minha artéria mais nobre, num ataque de melancolia e despendimento, largar um trombo como um miúdo larga um barquinho de papel na corrente do jardim até ao coração, ao cérebro. Todas as coisas e lugares deviam tem uma tabuleta (como as caixas de alta tensão) a avisar PERIGO DE MORTE. Se um dia eu abrisse um restaurante colava duas placas: Reservado ao Direito de Adminissão e Perigo de Morte, para ser interiamente honesto com meus clientes." (p.126-127)

Depois disso, nunca mais visualizei as caixas de alta tensão da mesma forma. Corroborando o nosso dito popular "para morrer, basta estar vivo", viver é arriscado. É preciso ter coragem para enfrentar as adversidades que certamente surgirão pelo caminho que, frequentemente, não têm volta. É preciso ter a consciência do perigo, mas não se deixar dominar pelo medo de que aconteçam coisas ruins. Tony tem um primo que acredita que o que pode acontecer de ruim, ocorrerá quando ele estiver envolvido. Um dia, ao assistir a notícia do sequestro dum avião, o primo declarou que na hora em que o sequestrador fosse escolher a vítima para morrer como pressão às autoridades para atenderem aos seus pedidos, entre 250 pessoas, ele seria o escolhido! 

Pessoas que tem muito medo da vida só sonham, só planejam e não realizam. Se escondem atrás do receio da decepção e preferem ficar no limbo de não tentar para não se decepcionar, não se machucar. Mas, nessa autoproteção se esquecem de viver. Conversa sobre isso com Kátia, enquanto ela arrumava meu cabelo (diga-se de passagem, um luxo uma cabelereira cult como Kátia!). Recém chegada de uma viagem de férias de 18 dias que cruzou o Brasil pelo Goiás, indo até o Paraguai, ela contava as peripécias do grupo dum grupo sui generis, a maioria idosa, numa viagem longa terrestre, à bordo de um ônibus turístico. Disse ela: "quem tem medo, não vai. Tive receio do meu courinho não aguentar a jornada. Mas, uma das viajantes tinha 84 anos e estava no décimo sexto roteiro. Eu aguentaria,certamente". E a viagem foi ótima, divertida e cheia de surpresas e aprendizagens. Por medo, não se vai até a esquina. Ao superá-lo, é possível ir até a lua. Para viver é preciso arriscar. Até porque o mais certo da vida é a morte.

O livro do Rui Cardoso Martins não é um colosso. Há momentos enfadonhos e confusos. É preciso concentração na leitura para lutar com a vontade de pular parágrafos e páginas. Com um pouquinho de fé, lê-se tudo, e aprendemos um pouco mais. Apesar disso a leitura me trouxe,  lá no outubro passado  e hoje ao revisá-la, reflexões importantes para o melhor aproveitamento de cada momento. Mesmo os mais difíceis, sempre têm algo a nos ensinar.

Até amanhã, fiquem com Deus.
  
Ps: Ilma alertou-me nos comentários que o Obama é democrata. Desculpem a falha, fica corrigido. Eu não tendo nadinha de política norteamericana! Beijos a todos.    

4 comentários:

  1. "Navegar é preciso, viver não é preciso." Fernando Pessoa

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    1. Texto ótimo, Anninha! Só uma correção: Obama é democrata. Beijos.

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    2. Ah, e é? kkkk! Nem vou corrigir no texto para não perder o sentida da tua fala! Vou colocar uma nota de rodapé! Obrigadíssima. Já vi que eu não entendo nada de política! :)

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