terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Tolerância



Eu bem sei que vocês já leram, discutiram à exaustão este tema, até porque, tendo em vista os lamentáveis acontecimentos da última semana em Paris, é impossível manter-se imune a uma situação tão polêmica, que a cada dia agrava-se e, da qual, eu, pessoalmente, não vislumbro muita possibilidade de saída. Estamos mesmo por um fio. Engana-se quem pensa que a causa primordial destes problemas são de cunho religioso. Na minha visão, o problema é essencialmente humano. 

Quando estive em Portugal em finais de setembro passado para a defesa do doutoramento, fiz questão de voltar a alguns lugares que costumava frequentar para matar as saudades. Aproveitei um dia que estava de saída para um final de semana no Porto e fui ao Refúgio comer um cachorro quente. Eu e Ana Luiza frequentamos muito este bar que é dominado por estudantes e professores da Universidade de Aveiro. Lá servem umas saladas muito boas, mas gosto mesmo é do cachorrão especial: meia baguete com salada, molho, salsicha, queijo, batata palha. De quebra, vem uma porção de batata frita bem servida. Acompanhado com um sumo de laranja puríssimo, equivale a um almoço. Enquanto esperamos, damos uma olhada nos jornais do dia que ficam sobre o balcão. E nesta espera, me deparei com a carta do leitor publicada em destaque no Jornal de Notícias, conforme a foto acima, registrada pela diligente torradeira.

Na carta, o leitor reclama da dificuldade que os imigrantes têm de integrar-se a cultura do país de acolhimento, teimando em manter os hábitos e costumes alienígenas. Destaco o que a criatura diz no último parágrafo da cartinha: "A primeira coisa que a Europa e os Estados Unidos deveriam fazer, por lei, era impor que o emigrante obrigatoriamente cumprisse as suas leis e costumes." Quanto a lei, não me faço de rogada, e todos devem cumprir as leis do local onde são acolhidas. Contudo, quanto aos costumes, o caríssimo leitor escorregou feio no seu etnocentrismo, conceito que me foi ensinado por Eliane Vilar, nos textos mais que revisados de Franz Boas. Como pode um  governo obrigar as pessoas a abandonarem seus hábitos e suas crenças para ter o direito a permanecer em um determinado estado nacional? Como desprezar o patrimônio por séculos construído por famílias, que são perpetuados através das inúmeras gerações, somente porque um grupo de sujeitos acredita que o seu modo de viver é mais adequado, mais correto e melhor? Como é possível padronizar o pensamento?

Confesso que encontrar uma matéria como esta num jornal português, espantou-me. Vivi três anos fora do Brasil, e foi uma experiência grandiosa. Em linhas gerais, as discriminações que vivenciei foram poucas, e aos preconceituosos, com licença da palavra, mandei-os todos à merda. Minha filha teve oportunidade de conviver em sala de aula com portugueses, chineses, indianos, ucranianos. Portugal é um exemplo de tolerância, haja vista a sua história antiga, pois é um povo formado por várias etnias, ao mesmo tempo que é formador de vários povos mais jovens. Obviamente, neste processo de interface houveram inúmeros conflitos, mas, ocorreu também uma aprendizagem de tolerância e respeito de parte à parte. No tempo em que convivi com os índios, tive acesso às ideias de Marcos Terena, da etnia Xané. Lembro-me muito bem, mesmo passados tantos anos, que num dos textos, ele contava que durante muito tempo fingiu ser japonês, e até era chamado de "japa" para ser aceito socialmente, até entender que precisava constituir a sua identidade como indígena brasileiro. E lembro-me bem dum trecho do texto em que ele refletia sobre a sua formação  e como o conhecimento poderia ajudá-lo a conviver na sociedade nacional: "eu preciso saber o que eles (os 'brancos') sabem, sem deixar de ser quem eu sou." Ou seja, é possível aprender o outro, sem ter que desaprender a si próprio.

Neste momento, tão turbulento, é primordial refletirmos: será que o nosso comportamento, individual e/ou coletivo é favorável ao desenvolvimento da cultura da tolerância? Até porque todos têm o direito de serem com são, desde que não interfira no direito do outro de também o ser, e impor qualquer que seja a condição, como sugere o nosso leitor revoltado, é um início fracassado. Conforme diria Caetano Veloso: "Cada um sabe a dor a e a delícia de ser o que é". No enfrentamento a esta situação, vamos tentar assumir uma postura mais crítica, sem perder o respeito às especificidades culturais. E quando não for possível, sigamos o conselho de D. Jura: "Se não for possível fazer nada, beba água. Faz um bem danado".  

Até amanhã, fiquem com Deus. Independente de qual seja o seu Deus. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário