domingo, 22 de março de 2015

Eu protesto!

Muito já foi dito acerca dos protestos do dia 15 de março. Muito também já vi e já li, e outro tanto, me recusei a ler por conta da ignomínia que representam. A palavra bonita, que quer dizer o mesmo que os meninos classificam como "vergonha alheia" resume bem o sentimento que trago, passados estes oito dias. É impressionante como o povo brasileiro tem a capacidade de se expor ao ridículo em rede mundial. Mas, numa sociedade conduzida por títeres, não poderíamos que resultasse em situação diferente. Preferi calar, exceto na partilha dos ataques dos pseudo-intelectuais da educação a pedir a exclusão das teorias de Paulo Freire das práticas educacionais. Explicando: é que a teoria do educador pernambucano, reconhecida como um marco na literatura especializada em todo o mundo, fundamenta-se em prática educativas para a emancipação das classes populares. Paulo Freire desenvolveu um método de alfabetização que despertava o senso crítico do trabalhador. Aplicando sentido ao processo de letramento, o professor conseguia resultados mais rápidos e eficazes, pois, partindo da realidade social vivenciada pelos estudantes, o processo de ensino e de aprendizagem se tornava mais significativo, pois, o aprendiz fazia conexões entre o que se estudava e o que vivia. Para quem não é da área, isso tudo pode soar como fru-frus pedagogês. Mas, convenhamos: ensinar jovens e adultos na base do "Ivo viu a uva", é no mínimo, desprestigiar a inteligência que existe em todos nós, não somente pela falta de criatividade, mas sobretudo com a distância entre o vivenciado e o estudado. Ressalto que isso é apenas um exemplo do conteúdo de obras como Pedagogia do Oprimido e Educação e Mudança. Paulo Freire propôs uma prática educativa que ensinasse o estudante a pensar socialmente, coisa que tenho visto como cada vez mais rara, mesmo nos bancos da Faculdade em que trabalho. E lamento muito a desmobilização e a superficialidade de jovens que só pensam em passar para posar nas fotos de formatura. Mas, isso é uma outra história.

Pronto, então, mesmo assistindo pouca tv e selecionando melhor o que vejo nas redes sociais, não consegui me eximir da indignação com determinados posicionamentos. Quero deixar muito claro que entendo que todos têm o direito de pensar o mundo da maneira que melhor se apresenta e externar a sua opinião. Contudo, o ideal é que os manifestantes se fundamentem um pouco mais, antes de passar atestado de burrice em rede mundial. Requerer a destituição da presidente (perdoem-me, mas "presidenta" não me entra. Acho tão feio!), eleita democraticamente, pensando que quem vai assumir o poder é o segundo lugar no processo eleitoral é ser burro demais. E além disso, burro esquecido, pois já vivenciamos esta situação num passado recente, o que fez de Itamar Franco o presidente do Brasil, no lugar do destituído Fernando Collor. Bastava folhear um livro de história da educação básica para respeitar o próprio diploma. Além disso, há cartazes ofensivos e preconceituosos, que remetem a falta de respeito do humano pelo humano. Abaixo, um cartaz que me embrulhou o estômago.


 A vontade que me deu foi de explicar a esta criatura que direitos trabalhistas são para todos. E, se um dia, a jovem da fotografia precisar trabalhar (não quero nem imaginar o tipo de profissional que isso irá resultar), vai desejar ter todos os seus direitos respeitados. Aliás, volto atrás para refletir sobre que qualidade de estudante é essa que faz questão de exibir um lindo sorriso, um lindo cabelo na chapinha e um cartaz tão mal escrito. É a cara das criaturas que, apoiadas e até conduzidas e apoiadas pelos pais, pressionam os professores para passar no componente curricular quando não aprendeu nada. Do pouco que acompanhei das manifestações orquestradas pelas TV abertas, temerosas pelo iminente processo do controle das mídias, esses dois casos me fizeram desligar a tv e o computador e abrir um livro.

Sem coincidências, estou lendo a biografia de Nara Leão, a cantora. Escrita por Sérgio Cabral e publicada pela Lazuli Editora em 2008, um trecho motivou-me a escrever este post, mesmo eu tendo me prometido que não iria abordar o tema. É que a cantora, nascida e criada na zona sul do Rio de Janeiro, à beira das praias mais famosas do mundo, deu uma guinada em sua carreira, lá pela década de 1960, quando excursionou pelo Nordeste e Norte do Brasil e se deparou com a realidade de exclusão que vivida nestas regiões. Se a situação não era boa no sul maravilha, no nordeste, abatido pela seca, a situação era muitíssimo pior, potencializada pela exploração promovida pelos gestores públicos. Nara, moça de classe média, rompeu com a fórmula fácil do amor-mar-e-flor que lastreava (tua palavra, Izabel Correia!) a bossa nova, e construiu com Augusto Boal e Oduvaldo Viana Filho o espetáculo Opinião. As canções do show abordavam as dificuldades vivenciadas no morro e no sertão, respectivamente legitimadas com os sambas de Zé Keti e os baiões e cocos de João do Vale. E, como tinha muito acesso a mídia, Nara Leão passou a posicionar-se contra o modelo de gestão adotado no Brasil, que desembocou nos anos de chumbo, a partir de 1964. O restante vocês sabem, seja por ter vivenciado pessoalmente, seja através dos livros de História. A cantora não chegou a ser presa, mas foi ameaçada e processada, o que mobilizou a classe artística. Em sua defesa, Carlos Drummond de Andrade, escreveu um poema, publicado no Jornal Correio do Amanhã, do qual transcrevo um trecho:

Meu honrado marechal, 
Dirigente da nação,
Venho fazer-lhe um apelo:
Não prenda Nara Leão.

Soube que a Guerra, por conta,
Lhe quer dar uma lição.
Vai enquadrá-la -esta é forte -
Artigo tal... não sei não.

A menina disse coisas
De causar estremeção?
Pois a voz de uma garota abala a revolução?

Nara quis separar
O civil do capitão?
Em nossa ordem social
Lançar desagregação?

Será que ela tem na fala,
Mais do que charme, canhão?
Ou pensam que, pelo nome,
Em vez de Nara, é leão?
(... p. 102-103)

Com a leitura, ficou-me óbvio duas coisas: 1) A classe média tem o direito de protestar acerca do que lhe desagrada, a exemplo de Nara, Chico Buarque e tantos outros expoentes da música, literatura e do teatro. É possível se indignar e se engajar na luta pela democracia, pela liberdade de expressão, pelo respeito aos direitos da minoria. Não é preciso ser pobre para saber que a saúde, educação, moradia e alimentação são direitos inerentes a pessoa, independente de sua classe social. Ademais, se melhorar para o povo, melhora para todos. 2) Que os protestos da semana passada só me mostraram o despreparo das novas gerações, que carecem urgentemente de desenvolver o pensamento crítico mais básico, cuja premissa é questionar o que se apresenta para construir um posicionamento mais coerente. A classe média atual é uma maria-vai-com-as-outras, que somente replicam o que determinam as mídias, a típica massa de manobra, como diriam os revolucionários das décadas de 1960-70.

Fica aqui o meu protesto contra a informação teleguiada, a educação desprovida de crítica, a formação do sujeito como consumidor de produtos descartáveis, superficiais como suas necessidades, e como suas vidas.

Até amanhã, fiquem com Deus.




   

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