domingo, 17 de maio de 2015

Sofrência

Quando eu der um sumiço, nem pensem em sequestro. Sendo mais exata, é sequestro de tempo. Às vezes, o  trabalho toma conta, então fica difícil traçar essas linhas. Como já disse na última escrita, fui escalada para as aulas de didática na Pós-Graduação, então, as semanas tecnicamente são emendadas: depois de passar o sábado, das 8h às 17h em sala de aula, não sobra muito de pessoa para sentar à cadeira e empunhar a pena eletrônica. A vantagem é que, como explicou muito bem Eliane, todo professor é uma espécie de vampiro. É possível estar caindo pelas tabelas, mas quando entramos na sala de aula, nos nutrimos da energia do grupo, o cansaço vai embora, e as coisas fluem. O problema maior é o antes, pois 70% do nosso trabalho é planejamento,  e o depois, que eu chego em casa um resto de pessoa. Assim, estão justificadas as ausências.

Quando ainda estávamos em Portugal, ouvi, ou melhor li, pela primeira vez o termo "sofrência", através dos posts do Bode Gaiato. Outro dia, Tony me contou que há uma batalha judicial entre os supostos criadores do termo, pois o mesmo transformou-se na chave do sucesso para um certo tipo de música que caiu fácil no gosto popular. Achei graça. Nestas horas, todos querem ser o pai da criança, pois, mesmo não sendo ela nem bonita, nem agradável, rende dividendos. Não é de hoje que o povo se identifica com a música cuja temática é a dor de corno, seja ele deixado ou traído. Na minha infância, chamava-se "fossa" ou "roedeira". E quando minhas irmãs estavam no estado (e algumas delas pareciam até gostar disso), Roberto Carlos rodava exaustivamente em grandes LPs. Uma chateação. Essa de prolongar sofrimento nunca foi comigo. Se é para chorar, choro durante 30 segundos. Se for muito grave, choro durante um minuto e já me basta. Talvez escreva uns versos meio sem jeito ou trace umas linhas inspiradas. E pronto. Vamos à próxima cena. O problema é que a sofrência rende, tanto para indústria fonográfica, quanto para a indústria de bebidas, pois uma boa sofrência só é bem curtida com altos teores alcoólicos. No feriado do 1º de Maio, passamos o dia na nada agradável companhia do Pablo. É que o vizinho não viajou e promoveu um churrasco com os amigos. A sofrência rolou em alto e bom som das 10h até as 18h30. Talvez, a patroa tenha desligado o som e dispensado os convivas ébrios para ver a novela. O pior é que estava um calor desgraçado, se eu abrisse as janelas, o Pablo entrava na cozinha. O jeito foi aguentar. Primeiro, pensei que eram os pedreiros da obra da esquina, que estavam dando um forcing final para levantar as últimas paredes da casa. Não é sempre que os trabalhadores da construção civil labutam ao som de Adele, como aqueles que trabalhavam na montagem das esquadrias metálicas do prédio lá da frente do nosso T0, em Aveiro.  

Ao meu entender, a sofrência deriva, regularmente de uma desilusão amorosa. Então, esse povo anda mesmo muito sofrido. Luiza já havia me dito que a vizinha de trás também é adepta, e, aos sábados, pela manhã, faxina ao som do xará do meu sobrinho. Podem até ser outros cantores, mas, para mim são todos rigorosamente iguais. A música é chata e repetitiva, a harmonia é pobre. Felizmente, não prestei tanto atenção ao ponto de captar nenhum trecho de refrão. Deus é bom e me fez ter ouvidos moucos para este tipo de sonoridade. Só lamento que a juventude faça uma autolavagem cerebral com sofrência e álcool. A música popular no Brasil já teve melhores dias, disso não tenho dúvidas. Não é saudosismo, está registrado no livro Histórias de Canções, do Vagner Homem e Rodrigo de La Rosa, numa análise da obra de Vinícus de Moraes e Toquinho:

"A parceria Toquinho-Vinícius foi bombardeada por grande parte de crítica, que não via com bons olhos o jovem paulista e classificava a produção que saía espontaneamente e em grande quantidade como 'easy music'. Alguns insistiam em desqualificar Toquinho ao compará-lo com os parceiros anteriores. como Baden, Tom e Carlos Lyra. Por outro lado, a opção por letras de música popular em detrimento da poesia atraiu críticas vindas de setores mais elitizados, lamentando o poeta que poderia ter sido e não estava sendo." (p. 141) 

Velhos tempos em que a música de baixa qualidade era feita por Vinícius de Moraes. Talvez, eu seja mesmo saudosista, e por isso gosto tanto da Carta ao Tom 74, que exaltava o Rio de Janeiro do passado. Logo, Chico Buarque e Tom Jobim cuidaram em fazer uma paródia da música (p. 158), que ficou assim :

Carta ao Tom (paródia)

Rua Nascimento Silva, 107
E eu saio correndo do pivete
tentando alcança o elevador
Minha janela não passa de um quadrado
A gente só vê cimento armado
Onde antes se via o Redentor
É, meu amigo, só resta uma certeza
É preciso acabar com a natureza
É melhor lotear o nosso amor.

Como eu conheci a música com o Arte Livre, grupo garanhuense que cantava MPB nos bares da cidade na década de 1980/90, passei muito tempo cantando na versão adaptada para a situação local, que coloca o Givaldo Calado (empreiteiro da região) na letra da música. A sofrência da década de 1960 era assim. Logicamente, a música de baixa qualidade existia, mas não era generalizada, restringindo-se aos cortiços e bares risca-faca de ponta de rua. Atualmente, o sujeito está numa Hilux ouvindo a baixa qualidade e som mais que suficiente para ensurdecer um quarteirão inteiro. Só prova que bom gosto não tem muito a ver com poder aquisitivo. Bons tempos aqueles em que o povo novo tinha opção de ouvir música boa. Mas, nem tudo está perdido, O Vagão reabriu e a Lourdes Maria (banda da Mytsi, minha sobrinha) de vez em quando toca por lá, dando uma oportunidade ao juízo desse povo, tão cheio de sofrência.

Até amanhã, fiquem com Deus e com a Carta ao Tom 74, numa versão 'feiosa' com o Toquinho. 




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