Que a vida da mulher nunca foi fácil, já sabemos, pois cada uma tem sua própria experiência. Mais dia, menos dia, a vida nos desafia a ser resistente a situações que são causadas somente pela condição feminina. Sempre achei essa conversa meio cansativa, mas, a cada dia percebo a importância de discutir as questões de gênero, resgatando a dignidade feminina como estratégia de sobrevivência. Em tempos tão bicudos como estes que vivemos, em que regredimos tanto nas relações interpessoais, seja no ambiente de trabalho, na política ou na convivência social, é fundamental o processo educativo de meninas e meninos para que as novas gerações consigam estabelecer relações fundamentadas na equidade, em que cada pessoa (humana: aprendi isso no tempo que andei no curso de Direito!) tenha a oportunidade de contribuir para a construção de uma sociedade mais justa, mais humanizada.
Parece um discurso panfletário, mas não é. É fruto da reflexão acerca da leitura dessa obra.
Um dia, e isso já faz algum tempo, Tony estava assistindo um pedaço do programa do Pedro Bial em algum canal televisivo. A certa altura, chamou-me para ver uma jovem sendo entrevistada pelo famoso jornalista. Fiquei de pé, com um pano de prato à mão, porque se não me interessasse, voltaria a fazer o serviço doméstico, que tradicionalmente cabe às mulheres-e-mães. Gostei da conversa da menina, autora dessa obra. Adriana Negreiros é uma jornalista muito competente, que fez um excelente documento, analisando o cangaço através do olhar feminino. É uma mulher escrevendo sobre mulheres, e isso faz toda a diferença.
Ao final da entrevista, coloquei a obra na minha lista de leituras futuras e foi isso. Ano passado, no segundo semestre da pandemia, fui procurar um arquivo em busca de uma informação qualquer e achei o lembrete. Comprei o livro no Amazon, acho que pelo mês de Setembro. Foi para a fila, e somente agora, fiz a leitura. Vários aspectos me chamaram atenção na obra: a vasta documentação, as entrevistas, os arquivos eletrônicos e impressos consultados exaustivamente, as fotografias selecionadas. Contudo, a linguagem que a autora utilizou foi um diferencial. Ela relata os fatos com uma leveza, mesmo sendo um tema tão cascudo. São inúmeras as passagens que reconhecemos o nosso linguajar, com uma riqueza de detalhes que transporta o leitor ao ambiente onde desenrolou-se a saga do cangaço.
O livro passa longe da discussão clichê sobre a construção heroica de Lampião. Logo de cara, a jovem escritora desmistifica essa concepção, relatando em tons fortes os fatos conforme ocorreram nas décadas de 1930/40. Percebe-se portanto, que não há uma dicotomia entre mocinhos e bandidos. Preferiu contar a história sem criar mitos, numa sociedade estratificada e amplamente corrompida. Refletir sobre a condição feminina no terreno árido do sertão alagoano, sergipano, baiano e pernambucano, transversalizado por uma religiosidade cega é uma tarefa muito bem conseguida nesse livro. O processo de entrada, aceitação, acomodação e vivência das mulheres cangaceiras demonstra a formação de um grupo social sólido em meio ao banditismo, com códigos e condições muito específicas. E as histórias dos relacionamentos afetivos e amorosos? e as histórias dos partos em meio às fugas nas veredas do sertão catingoso? Ainda assim, era uma vida idealizada cobiçada por moças oprimidas pelas famílias, desconhecedoras das privações, dos caminhos espinhosos, da vida ao relento e fora da lei e das relações brutais.
São muitas as histórias que ouvimos ainda hoje acerca do ciclo do cangaço. Contudo, até hoje, não houvera para mim oportunidade de adentrar a esse universo pela mão feminina. Sem mitificações, nas cores cruas de uma história tão próxima e tão distante.