domingo, 28 de março de 2021

Leituras e reflexões: Maria Bonita. Sexo, violência e mulheres no cangaço

 

Que a vida da mulher nunca foi fácil, já sabemos, pois cada uma tem sua própria experiência. Mais dia, menos dia, a vida nos desafia a ser resistente a situações que são causadas somente pela condição feminina. Sempre achei essa conversa meio cansativa, mas, a cada dia percebo a importância de discutir as questões de gênero, resgatando a dignidade feminina como estratégia de sobrevivência. Em tempos tão bicudos como estes que vivemos, em que regredimos tanto nas relações interpessoais, seja no ambiente de trabalho, na política ou na convivência social, é fundamental o processo educativo de meninas e meninos para que as novas gerações consigam estabelecer relações fundamentadas na equidade, em que cada pessoa (humana: aprendi isso no tempo que andei no curso de Direito!) tenha a oportunidade de contribuir para a construção de uma sociedade mais justa, mais humanizada. 

Parece um discurso panfletário, mas não é. É fruto da reflexão acerca da leitura dessa obra. 
Um dia, e isso já faz  algum tempo, Tony estava assistindo um pedaço do programa do Pedro Bial em algum canal televisivo. A certa altura, chamou-me para ver uma jovem sendo entrevistada pelo famoso jornalista. Fiquei de pé, com um pano de prato à mão, porque se não me interessasse, voltaria a fazer o serviço doméstico, que tradicionalmente cabe às mulheres-e-mães. Gostei da conversa da menina, autora dessa obra. Adriana Negreiros é uma jornalista muito competente, que fez um excelente documento, analisando o cangaço através do olhar feminino. É uma mulher escrevendo sobre mulheres, e isso faz toda a diferença. 

Ao final da entrevista, coloquei a obra na minha lista de leituras futuras e foi isso. Ano passado, no segundo semestre da pandemia, fui procurar um arquivo em busca de uma informação qualquer e achei o lembrete. Comprei o livro no Amazon, acho que pelo mês de Setembro. Foi para a fila, e somente agora, fiz a leitura. Vários aspectos me chamaram atenção na obra: a vasta documentação, as entrevistas, os arquivos eletrônicos e impressos consultados exaustivamente, as fotografias selecionadas. Contudo, a linguagem que a autora utilizou foi um diferencial. Ela relata os fatos com uma leveza, mesmo sendo um tema tão cascudo. São inúmeras as passagens que reconhecemos o nosso linguajar, com uma riqueza de detalhes que transporta o leitor ao ambiente onde desenrolou-se a saga do cangaço. 

O livro passa longe da discussão clichê sobre a construção heroica de Lampião. Logo de cara, a jovem escritora desmistifica essa concepção, relatando em tons fortes os fatos conforme ocorreram nas décadas de 1930/40. Percebe-se portanto, que não há uma dicotomia entre mocinhos e bandidos. Preferiu contar a história sem criar mitos, numa sociedade estratificada e amplamente corrompida. Refletir sobre a condição feminina no terreno árido do sertão alagoano, sergipano, baiano e pernambucano, transversalizado por uma religiosidade cega é uma tarefa muito bem conseguida nesse livro. O processo de entrada, aceitação, acomodação e vivência das mulheres cangaceiras demonstra a formação de um grupo social sólido em meio ao banditismo, com códigos e condições muito específicas. E as histórias dos relacionamentos afetivos e amorosos? e as histórias dos partos em meio às fugas nas veredas do sertão catingoso? Ainda assim, era uma vida idealizada cobiçada por moças oprimidas pelas famílias, desconhecedoras das privações, dos caminhos espinhosos, da vida ao relento e fora da lei e das relações brutais.

São muitas as histórias que ouvimos ainda hoje acerca do ciclo do cangaço. Contudo, até hoje, não houvera para mim oportunidade de adentrar a esse universo pela mão feminina. Sem mitificações, nas cores cruas de uma história tão próxima e tão distante. 
  

domingo, 21 de fevereiro de 2021

Velório

 

"A coroa de orquídeas" é um conto de Nelson Rodrigues que eu gosto muito. Também é título de uma coletânea, publicado pela Companhia das Letras, em 1993. Publicado como artigo no Jornal Última hora, no período de 1952-62, quando o jornalista escrevia a crônica policial do veículo. Com uma narrativa invejável, "O Velho" narrou o cotidiano carioca com maestria e um humor ácido que me diverte muito. Ele desenvolveu a descrição de um cenário brasileiro encantador do período desenvolvimentista, que culminou com a construção de Brasília. Era um Brasil lírico, elegante e iluminado. Influenciada pela leitura, não é raro ter que ir a um velório, e, a depender da proximidade com o falecido, lembrar de algumas dessas histórias.

Velório é um rito social curioso e obrigatório. Semana passada outra, Tony esteve às voltas com os rituais de despedidas a um parente em Iati, pequena cidade do interior de Pernambuco, à 42 km de Garanhuns. Como a família deles é muito grande, o velório é também uma ocasião de reencontro de parentes distantes, e mesmo em tempos de pandemia, foram muitos primos que se abalaram até a zona rural para prestar as condolências ao Tio Luiz pelo falecimento do seu filho. Inevitavelmente nesses encontros, regados a café e bolachas,  sempre se (re) contam algumas histórias divertidas, mesmo na pungência do momento. Geralmente, lá pelas tantas, as conversas se tornam tão  animadas, que faz-se necessário se lembrar do morto, mantendo ao compostura exigida pelo momento. 

Como é pessoa muito conhecida, meu marido sempre vai a velórios, cumprindo a risca a etiqueta social. Outro dia, ao café da manhã, verificando as notícias, exclamou:

- Eita, morreu o filho de seu Fulano!

Esse Fulano em questão era um ex-vereador, companheiro de Câmara de Seu Osvaldo, na década de 1980. Lá se vai Tony Neto, arrumar os compromissos do dia para comparecer ao velório. Chegando à Casa Funerária, encontrou um conhecido já idosinho, possivelmente parente distante, também ex-vereador, contemporâneo dos dois já citados. Na tal casa funerária, havia dois falecidos sendo encomendados, um em cada câmara ardente, com muita gente aglomerada, pois isso tudo foi antes da pandemia. O velho apressado, julgando-se atrasado,  atravessou a pequena multidão, que já aguardava o padre para a missa de corpo presente. Ao lado do caixão, procurou algum parente para prestar as condolências. Os presentes, solícitos, indicaram uma o jovem chorosa como sendo neta do falecido. Tony ainda pensou: "Neta? mas fulaninho tinha idade para ter neta adulta?" ainda estendeu a mão para deter o acompanhante, mas ele já estava cumprimentando a moça e dizendo: "Tão moço, morreu de quê?" Incrédula, a neta respondeu: "morreu do coração". O velho ainda repetiu: "mas era muito moço... Quantos anos ele tinha?" A moça, de má vontade, respondeu: "Ele tinha 96 anos". Somente aí é que octogenário olhou para o morto acomodado no caixão, entendendo que entrou no velório errado! Murmurando palavras de consolo e segurando o riso, Tony rebocou o velho pra fora, que disse: "Eita, Ferreira! entramos no velório errado!" Depois dessa história, toda vez que ele vai a um velório eu já recomendo: "certifique-se que é o seu defunto, antes de entrar!"

Já em tempos de pandemia, esses rituais se tornam restritos e, talvez sejam uma tendência que se tornem cada vez mais escassos. Mas não deixa de ser um curioso rito de passagem, que conforme Ariano Suassuna,  ao "único mal irremediável que, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo que é vivo, morre." 

Como é domingo, fica aqui o link do conto do mestre Nelson Rodrigues.


Uma boa semana, fiquem com Deus.  






segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Veredas


Então, desde dezembro de 2020, um ano atípico na história recente da humanidade, me flagrei pensando nesse "pedaço de papel eletrônico". Fazendo um exame mais detido, reconheço, estive perdida. A uma certa altura, não sei bem que caminho peguei, em que viela me meti, em que sertão me embrenhei. Me vi em meio a uma repetição de rotas, em colisão comigo mesma. Nunca soube porque parei. Se perguntar a Matheus, tenho absoluta certeza que ele vai responder: "terapia". Por conta própria, como quem toma remédio, decidi refazer alguns caminhos. E para isso, tive que voltar aos sertões. Nesses tempos em que perambular por aí é proibido, poderia ter tomado a via documental de Euclides da Cunha. Preferi pegar na mão de Guimarães Rosa e me embrenhar nas veredas em busca de um caminho só meu. 

Nem preciso me demorar muito em apresentar a obra. Todos que minimamente prestaram atenção nas aulas de literatura sabem que "Grande Sertão: Veredas" é um clássico da literatura brasileira. Portanto, permitam que conte a minha história com esse livro. Publicado em 1956, a obra aborda a dinâmica social das Gerais, nomeadamente das Minas Gerais e da Bahia. Numa descrição impecável do quadro natural  e social, é possível percorrer através dessa leitura, os chapadões, os buritizais, os rasos e as veredas. Através da prosa de Riobaldo, que relata ao "doutor" a sua trajetória como jagunço, destacando o percurso dos chefes, como Zé Bebelo, Medeiro Vaz e Joca Ramiro, alinhavados por uma história de um amor mal conseguido.  

Conheci esse universo em 1985, através de uma minissérie produzida pela Rede Globo, tendo Tony Ramos e Bruna Lombardi como protagonistas. Na época, tinha 12 anos. Três anos depois, Ilma trouxe o livro da biblioteca do SESC. Li num só fôlego. 35 anos depois, buscando referências para reconhecer o meu percurso pessoal, decidi ler esse livro novamente. Busquei nalgum sebo virtual. Mandaram-me um exemplar embrulhado em papel pardo. Coloquei na minha "fila de leitura" e no mês de Dezembro,  entrei nos buritizais dessa leitura, quase numa cartase. Já ao final da leitura, sonhei três noites seguidas, sendo eu Tatarana e, Diadorim, pessoa conhecida. Tudo ao contrário, como quem olha pelo espelho. Vi pegadas novas no mesmo texto e chorei nas mesmas páginas finais. 

Encontrei uma vereda para voltar e refazer uma parte do caminho, pois, apressada que estava em somente passar, não me deixei observar. Para quem apenas ver, o sertão dessa vida é todo igual. É preciso olhar para perceber que "O sertão não é malino, nem caridoso, mano ó mano. Ele tira ou dar. Ele agrada ou amarga ao senhor conforme o senhor mesmo" (p. 537). Mesmo sabendo que "viver é perigoso", perdi a pressa. A marcha do meu passo é suficiente para tanger meu destino, definitivamente entrelaçado com esse livro. 

Feliz em voltar para essa vereda digital.
Fiquem com Deus ao som de "O pedido", do mestre Elomar, com Elba Ramalho (1981).

 

 

domingo, 17 de novembro de 2019

Música?

Se tem uma coisa que não pode faltar é  música. A  boa música   anima, acalma, alegra. É cientificamente comprovado por alguém que desconheço que a música auxilia no crescimento das plantas, acalma os bebês e domina até as feras mais perigosas. Algumas músicas quando tocam no carro, faz o condutor pesar o pé no acelerador. Todo cuidado é pouco nessa hora. Mas a música é essencial como a gasolina. Nos impulsiona, ao mesmo tempo que evita dar atenção a buzina apressada no sinal que abriu há apenas três segundos. 
Essa semana, no caminho para o trabalho, ligamos o rádio porque as músicas do pendrive estão muito cansadas. Mas, cá no agreste, ouvir rádio é mesmo uma provação. A qualidade (ou a falta dela) é tão constante que dói no ouvido. E não é só uma questão de pobreza harmônica, as letras são muito sofridas. E eu, que tenho a mania de refletir sobre o que me apresentam, presto atenção na mensagem e questiono as motivações do emissor. 

Se tiver a pachorra de prestar atenção no conteúdo do que toca no rádio, irá perceber que as músicas que fazem sucesso hoje são 80% contando história de traição. A tão conhecida música de corno tem um nicho de mercado garantido, principalmente após a ascenção da Marília Mendonça, patronesse das traídas e traidoras. Na ocasiã, a música, interpretada pela Márcia Fellipe, dizia:
"É, com ela você posta foto
É,  com ela você sai para jantar
Em plena terca-feira
(...)
Eu não vou me comparar 
Mas já me comparando 
Cê  sabe que eu sou melhor
Eu sou mais eu indo e voltando
Fica a dica,
Do jeito que cê tá,  tá vacilando".

Então, fiquei pensando na ousadia da criatura. Se o seu status é de "a outra" do sujeito em questão estar reclamando de quê, minha filha?  Quando a criatura entra numa bocada dessas, deve saber mais ou menos o que o futuro lhe reserva. Requerimento negado. Próximo. 
Sábado,  fomos comer uma feijoada num barzinho na Avenida Caruaru. Simples, gostoso e barato. A mocinha simpática do atendimento estava lutando com a TV para conectar o bluetooth. Quando conseguiu, era um show do Wesley Safadão. A 'música' era "na cama que eu paguei", com participação do Zé Neto e Cristiano, que dizia assim:

" Eu tinha um lar, eu tinha uma casa
Agora eu tô morando num motel de rodoviária 
Assistindo novela numa TV 14 polegadas
Imagem chuviscada, Bombril na antena
Quem me vê dá até pena
E ela tá lá 

Na cama que eu paguei
Fazendo o amor que a gente nunca fez
Na cama que eu paguei 
Fazendo todo dia
O que comigo era uma vez por mês ".

Percebam que a indignação do gajo é  primeiro com a cama que ele pagou. É muita decadência. Dizem os especialistas do comportamento humano que as pessoas se identificam com as histórias e por isso, elas acabam fazendo sucesso. Concordo em parte, mas ainda acredito que a grande maioria dos consumidores desse produto são motivados pela nenhuma profundidade das letras: É raso, fácil, não precisa nenhum esforço intelectual para acompanhar, nenhum raciocínio para entender. 
Ah,   eu Tony e Luiza discutíamos a música enquanto comíamos a feijoada. Rimos tanto com a nossa  interpretação do texto da música, que a mocinha veio de lá e desligou. Nos três não fizemos sucesso. E pensar que os jovens sao as maiores vitimas da mudica ruim... faz pena. 
Felizmente, ainda existe esperança.  Essa semana estava corrigindo uma monografia e a autora,  uma jovenzinha de 22, 23 anos, me questionava como apresentar as plantas da obra em estudo. Aconselhei colocar num CD, já que impressas ficaria muito volumoso. Contudo, avisei: "faça, mas eu não vou nem olhar. Seu orientador e sua banca que vejam". Por mim, ela poderia colocar música de Zezé de Camargo e Luciano. Ela corrigiu-me printamente: "Se for música minha, será Bethoveen, professora". Fiquei pasma. Uma menina com cara de empoderada do funk,  com ouvido treinado para música clássica! O mundo tem jeito, apesar de eu ter quase certeza que Aracely é a reencarnação de Leonardo da Vinci.

domingo, 10 de novembro de 2019

Sincericídio

Há dias atrás, Lulu teve uma dessas viroses que assolam a primavera tropical. Nessas paragens agrestes, as estações do ano (a saber: uma gelada e outra, torrando) sempre trazem no bolso uma ou outra virose. Até eu, tão invencível, quedei-me numa delas. O jeito é reforçar a hidratação,  algum repouso e esperar a natureza agir. Então, mesmo com um festival literário acontecendo na cidade,  ficamos as duas no esquema cama-sofá,  para que a menina vencesse o vírus. Numa sessão de sofá- internet, ela perguntou-me se poderíamos ver um vídeo. Concordei e me surpreendi com a escolha da pequena: três tatuados num papo cabeça com Mario Sérgio Cortella, falando sobre honestidade. 

Gostei da conversa porque um tempo de tanta mentira, repaginada como fake News, há mesmo uma pressão para sermos, ou pelo menos, tentarmos vivenciar mais a honestidade. Geralmente, quando se fala em honestidade, vem logo a ideia da relação com valores monetários e o respeito a propriedade alheia.   Contudo, a honestidade também relaciona -se as ações comuns no cotidiano. e nesse aspecto, tudo demaus é exagero, e  a sinceridade extrema pode caracterizar um sincericídio, como o próprio Cortella designou. Será que é sempre imprescindível dizer toda a verdade?

Outro dia, Tony foi convocado para uma audiência. O cliente era uma figura simples, enrascado numa relação falida. Antes da audiência, o bom advogado explicou ao sujeito que só respondesse o que a Juiza perguntasse. Ainda perguntou três vezes se o cliente havia entendido, e a criatura confirmou.  Na audiência, acusado de ameaçar o atual companheiro da ex com uma faca de cozinha, o rapaz achou melhor contar a verdadeira história: que foi a casa da ex-companheira, que tem uma medida protetiva, ver o filho menor, que ainda estava na escola. Segundo ele, aproveitou para "apreciar a paisagem" da mulher. Quando o atual companheiro chegou, ele estava na cozinha da residência com a filha maior. O cara não gostou e as coisas ficaram feias. Apesar da filha afirmar que ele não havia pegado a faca para ameaçar o atual, o cliente sincero, interrompeu e afirmou  que pegou a faca mesmo, só não aconteceu nada mais grave porque a mulher disse que ia chamar a polícia. A esta altura, Tony já estava verde com as verdades do cliente, tentando encerrar o depoimento que só   complicava mais e mais.  Então, habilmente,  a Juíza perguntou se ele não lembrava da ordem de restrição. O sujeito,  sem pestanejar, sacou: "que nada, doutora!  A polícia demora a chegar, é o tempo da gente correr." Perguntado se havia mais algum questionamento, o bom advogado respondeu que não,  pelo amor de Deus. A sinceridade do cliente pôs a causa inteira a perder.

É certo que a verdade deve prevalecer, mas nem toda verdade deve ser dita. Uma boa estratégia para avaliar o que devemos falar e quando devemos calar é exercitar a empatia, colocando-nos no lugar do outro. Se o custo for maior que o benefício, é melhor ficar calado. Já diria minha amiga Genésia: "quem fica calado, não se perde"
Segue o link do vídeo. Boa semana!

https://youtu.be/FK7kdwrXzds