sábado, 30 de junho de 2012

Leituras e Reflexões: Uma casa na escuridão



Os dias são curtos no inverno dos trópicos. Às 17h15, o céu plúmbeo já lança sobras aos passeios permanentemente molhados pela garoa fininha. Quando o relógio marca 17h30 já é cara de noite, e os pardais da praça já encontraram os nichos mais adequados, empoleirados nos galhos das árvores que pontuam os canteiros centrais da avenida. Nestes tempos molhados, de frio leve, ficamos quase felinos, procurando um lugar quentinho para ficar. De preferência, em casa.

Li “Uma casa na escuridão” em finais de maio, ainda em Portugal. O que me atraiu para José Luis Peixoto foi a sua juventude: O menino é de 1974, e tem uma lista de publicações considerável. Os títulos também chamam atenção, o primeiro contato foi através da leitura da orelha do livro “Cemitério de pianos”. Gostei do jeito complexo de traçar as palavras. Já no outro dia, consultei o acervo da UA e encontrei na (maravilhosa) Biblioteca esse título. Diferente das outras vezes, em que me debatia em busca do título nas imensas estantes, tive que solicitar a obra no depósito da instituição, que rapidamente foi localizado, e em minutos, estava em minhas mãos. Tudo muito eficiente, como sempre. Iniciei a leitura quase que imediatamente, tão logo subi as escadinhas ao primeiro andar do nosso prédio, na Glória. E imensas vezes tentei desistir da leitura. Em vão. José Luis Peixoto enfeitiça-nos com sua narrativa densa, sem parágrafos, nem diálogos. Habilmente, descreve os ambientes e as emoções das personagens, com uma exatidão que chega a doer.
É um livro sobre a perda. E o que é que se pode perder nesta vida?
Aos olhos da criança, a dor materna consequente à traição do pai com a escrava era um mistério de ruídos de homem e mulher, disfarçado à custo pela mãe. A rejeição expõe a perda da dignidade, que estreitou ainda mais os laços entre mãe e filho, assim descrito:
“Minha mãe e eu sentíamos exactamente a mesma coisa quando nos olhávamos a ser mãe e filho. E eu, como se descobrisse senti toda a força infinita do amor que nunca muda, do amor que permanece igual depois de anos e anos.” (p. 84)
Vivendo em uma casa povoada por lembranças e tristezas,  inúmeros gatos ocupavam os espaços livres e moviam-se como ondas. O escritor-personagem mergulha num amor impossível por uma mulher perfeita, somente possível nos delírios da personagem-escritor. José Luis Peixoto descreve o arroubo da paixão a promover uma felicidade passageira e ilusória:
Ser feliz por momentos é algo de que não se deve ter vergonha. Momentos que o fim torna ridículos. A felicidade, como o amor, é um sentimento ridículo. Mas, a felicidade, como o amor, só é ridícula quando vista de fora.” (p. 101)
O amor impossível faz viver uma ilusão de felicidade. Perde-se a dignidade, perde-se o amor. O que mais é possível perder nessa vida?
Perde-se a segurança, a integridade física, a liberdade, com a invasão dos bárbaros estrangeiros. E com eles a mutilação com a perda das capacidades essenciais a cada indivíduo. O que é do escritor sem a sua capacidade de escrever? O que é do músico sem as habilidades para tocar um instrumento? O que é da amante da música, impedida a capacidade de ouvir? E a mutilação é transcrita pelo autor com a repetição da curta frase “quero morrer”, cobrindo toda página 106 e 107. Em algumas situações, viver é o maior castigo, porque com a vida segue-se a repetição: “E o cansaço era um rio porque o cansaço era o tempo a passar” (p.204).
As descrições de José Luis Peixoto são fabulosas, tanto da escuridão que fechava a casa no mês de novembro, quanto da luminosidade intrusa do mês de julho, num claro recorte em palavras das regiões temperadas. Ao descrever as pessoas, o autor consegue descrever afetivamente o semblante do outro: “A tradutora dos meus livros era feia e era bonita. Os seus olhos eram feios, O seu olhar era bonito. Seus lábios eram feios, seu sorriso era bonito. Ela era feia e era bonita" (p. 214). Esclarece habilmente que a noção de beleza está para além da superficial harmonia física.   
“Uma casa na escuridão” não é um livro feliz. Sofri muito durante a leitura, mas, não dava simplesmente para parar pela metade. Era preciso saber o que iria acontecer na próxima página, no próximo capítulo, até a última folha. Era preciso enfrentar com a personagem-escritor a solidão do quarto, a  visão da luz de julho filtrada pelos galhos das árvores, vistos através das vidraças. Só o deixaria quando ele partisse, no ponto final.
Até amanhã, fiquem com Deus.

Um comentário:

  1. Lindo comentário, Anninha! Você está se tornando uma ótima crítica literária. Gostei bastante, quando ele diz que todos são ridículos quando amam, pois se perde a noção do perigo e da sensatez; Maria Betânia declama lindamente que "todas as cartas de amor são ridículas", também. É algo que só as outras pessoas percebem, quem é protagonista só percebe depois que acaba. Beijos pra você.

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