Os dias são curtos no inverno dos trópicos. Às 17h15, o céu plúmbeo já
lança sobras aos passeios permanentemente molhados pela garoa fininha. Quando o
relógio marca 17h30 já é cara de noite, e os pardais da praça já encontraram os
nichos mais adequados, empoleirados nos galhos das árvores que pontuam os
canteiros centrais da avenida. Nestes tempos molhados, de frio leve, ficamos
quase felinos, procurando um lugar quentinho para ficar. De preferência, em
casa.
Li “Uma casa na escuridão” em finais de maio, ainda em Portugal. O que
me atraiu para José Luis Peixoto foi a sua juventude: O menino é de 1974, e tem uma lista de publicações considerável. Os títulos também chamam atenção, o primeiro contato foi
através da leitura da orelha do livro “Cemitério de pianos”. Gostei do jeito complexo de traçar as palavras. Já no outro dia, consultei o
acervo da UA e encontrei na (maravilhosa) Biblioteca esse título. Diferente das
outras vezes, em que me debatia em busca do título nas imensas estantes, tive que solicitar a obra no depósito da instituição, que
rapidamente foi localizado, e em minutos, estava em minhas mãos. Tudo muito
eficiente, como sempre. Iniciei a leitura quase que imediatamente, tão logo
subi as escadinhas ao primeiro andar do nosso prédio, na Glória. E imensas
vezes tentei desistir da leitura. Em vão. José Luis Peixoto enfeitiça-nos com
sua narrativa densa, sem parágrafos, nem diálogos. Habilmente, descreve os
ambientes e as emoções das personagens, com uma exatidão que chega a doer.
É um livro sobre a perda. E o que é que se pode perder nesta vida?
Aos olhos da criança, a dor materna consequente à traição do pai com a
escrava era um mistério de ruídos de homem e mulher, disfarçado à custo pela
mãe. A rejeição expõe a perda da dignidade, que estreitou ainda mais
os laços entre mãe e filho, assim descrito:
“Minha mãe e
eu sentíamos exactamente a mesma coisa quando nos olhávamos a ser mãe e filho.
E eu, como se descobrisse senti toda a força infinita do amor que nunca muda,
do amor que permanece igual depois de anos e anos.” (p. 84)
Vivendo em uma casa povoada por lembranças e tristezas, inúmeros gatos ocupavam os espaços livres e
moviam-se como ondas. O escritor-personagem mergulha num amor impossível por uma mulher perfeita, somente
possível nos delírios da personagem-escritor. José Luis Peixoto descreve o
arroubo da paixão a promover uma felicidade passageira e ilusória:
“Ser feliz por momentos é algo de
que não se deve ter vergonha. Momentos que o fim torna ridículos. A felicidade,
como o amor, é um sentimento ridículo. Mas, a felicidade, como o amor, só é
ridícula quando vista de fora.” (p. 101)
O amor impossível faz viver uma ilusão de felicidade. Perde-se a
dignidade, perde-se o amor. O que mais é possível perder nessa vida?
Perde-se a segurança, a integridade física, a liberdade, com a invasão dos bárbaros estrangeiros. E com eles
a mutilação com a perda das capacidades essenciais a cada indivíduo. O que é do
escritor sem a sua capacidade de escrever? O que é do músico sem as habilidades
para tocar um instrumento? O que é da amante da música, impedida a capacidade
de ouvir? E a mutilação é transcrita pelo autor com a repetição da curta frase “quero morrer”, cobrindo toda página 106
e 107. Em algumas situações, viver é o maior castigo, porque com a vida
segue-se a repetição: “E o cansaço era um
rio porque o cansaço era o tempo a passar” (p.204).
As descrições de José Luis Peixoto são fabulosas, tanto da escuridão que
fechava a casa no mês de novembro, quanto da luminosidade intrusa do mês de
julho, num claro recorte em palavras das regiões temperadas. Ao descrever as
pessoas, o autor consegue descrever afetivamente o semblante do outro: “A tradutora dos meus livros era feia e era
bonita. Os seus olhos eram feios, O seu olhar era bonito. Seus lábios eram
feios, seu sorriso era bonito. Ela era feia e era bonita" (p. 214). Esclarece
habilmente que a noção de beleza está para além da superficial harmonia física.
“Uma casa na escuridão” não é um livro feliz. Sofri muito durante a
leitura, mas, não dava simplesmente para parar pela metade. Era preciso saber o
que iria acontecer na próxima página, no próximo capítulo, até a última folha.
Era preciso enfrentar com a personagem-escritor a solidão do quarto, a visão da luz de julho filtrada pelos galhos
das árvores, vistos através das vidraças. Só o deixaria quando ele partisse, no
ponto final.
Até amanhã, fiquem com Deus.
Lindo comentário, Anninha! Você está se tornando uma ótima crítica literária. Gostei bastante, quando ele diz que todos são ridículos quando amam, pois se perde a noção do perigo e da sensatez; Maria Betânia declama lindamente que "todas as cartas de amor são ridículas", também. É algo que só as outras pessoas percebem, quem é protagonista só percebe depois que acaba. Beijos pra você.
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