Pronto. Então, já completam duas semanas que estamos cá, e eu
com a impressão que o tempo voltou a acelerar, os dias cinzentos de inverno são
muito curtos. Mas nada me tira o prazer de reencontrar pessoas tão queridas. A
seara de visitas começou oficialmente no primeiro sábado, após o primeiro
impacto do burburinho da manhãs sabatinas
de Garanhuns. Fiquei atordoada com a muvuca colorida e ruidosa, tipicamente nordestina:
gente de todo jeito, cachorros e pardais, carrinhos de milho cozido, frutas e
churrasquinhos, ambulantes e moto-taxistas desleixados, trios de forró animando
os fregueses nas sapatarias, locutores apregoando promoções. Um universo
caótico, assombroso pelo descostume.
Nos primeiros dias cuidei em dar um jeitinho no “quarto da
frente”, onde armazenávamos papéis de um ano e sete meses. Honestamente, os
papéis se acumulavam há bem mais tempo do que a decorrência da minha ausência
física da nossa casa. Anos a fio guardei cópias de textos, transparências
ultrapassadas, projetos de cursos já concluídos, num apego insano a objetos que guardava com a
promessa nunca cumprida de um dia precisar deste ou daquele traste. Juntei uma
caixa grande de lixo tecnológico – inúmeros carregadores de telemóveis
inexistentes, um videocassete, um meu primeiro portátil sem conserto, uma
sombrinha vermelha com patinhos de Luiza quando era pequenina, um guarda-chuvas
velho, retorcido pelos ventos - finalmente decidi por arrancá-los de dentro da
minha casa, pois, se já vivi quase dois anos sem ao menos me lembrar que eles
existiam, por que continuar a cultivar essa lavoura improdutiva? Juntei as
sobras de 6 anos de eventos promovidos por Tony, e fiz a festa dos agentes do
meio ambiente, que felizes disputavam participação no inesperado espólio
exposto no passeio, antecipando-se ao camião do lixo.
No meio da arrumação encontrei fotos antigas, fotos de que
não me lembrava e fotos que não conhecia. Livros há muito tempo lidos, manuais
muito manuseados. Juntei a esses três ou quatro volumes importados nas duas
malas em que apertamos nossas coisas. Para não me apartar de Portugal,
carreguei dois ‘Saramagos’, um romance sobre Pedro e Inês de Castro. E Mia
Couto, o meu novo amor luso-moçambicano. Novidades para arejar antiguidades. Encontrei
também inúmeros Cds. Uns identificados, outros de conteúdo não sabido. Muitos foram
para o lixo, alguns não interessava o conteúdo, um dia já foram importantes, não lembro quando deixaram de ser. Outros não rodavam mais, danificados pelo tempo. Encontrei receitas de bolo que
nunca fiz, cadernos de versos que um dia escrevi. E cartas, muitas cartas de amor
para um único homem. Elas foram minhas quando as escrevi, passaram a ser dele.
E agora, são nossas. Com algumas, demos risadas, divertidos após duas décadas.
De outras, me perguntei o que era que eu estava a viver quando as escrevi. Outras
ainda desacreditei que as escrevi. São anos de palavras tecidas em finos papéis
amarelados pelo tempo. Me esforço para lembrar como eram meus dias antes dele,
mas nem sei se eles realmente existiram.
A arrumação desencavou brinquedos quebrados, livros sem capa,
mãos rabiscadas sobre a teoria em diplomas legais e Vade Mecuns. Achei os
livros criados no maternal. Numa das páginas, havia uma pegada da minha pequena
estampada em verde vibrante. Lembrei-me de uma titulação in memmoriam que
tivemos na FAGA, quando a mãe chamada à tribuna, desenrolou um lenço amarelado
pelo tempo com a marca do pezinho do filho perdido. Nem que eu viva cem anos,
jamais esquecerei aquele tributo do maior amor do mundo. É possível descartar
muitos objetos, porém, alguns se tornam o única prova material do que já é
indelével na memória. Guardei rabiscos, desenhos, bilhetes e composições. Estes
são do acervo da minha biblioteca afetiva.
Para partilhar objetos sem uso, dispomos no passeio uma
estante, que rapidamente foi recolhida por um vizinho, no melhor modelo de vivência
comunitária: o que não nos é mais necessário, pode servir a outros, sem que
necessariamente se obtenha um lucro financeiro. Não temos o costume de vender
coisas, o que não é mais util é repassado para outra pessoa, de coração aberto,
para que os objetos sejam bem aproveitados e atenda as necessidades de quem
recebe. De quebra, ganhamos espaço, seja para ocupar com o novo objeto novo, ou
simplesmente deixar o ar circular melhor, faxinando a casa e a alma.
Até amanhã, fiquem com Deus.
Lindo texto, Anninha. A pegada do menino estampada no lenço que a senhora apresentou na cerimônia da FAGA me arrancou lágrimas dos olhos, lindo e triste ao mesmo tempo. Adoro seus pensamentos e reflexões. Beijos.
ResponderExcluirTu és muito generosa... Amo-te!
ExcluirTbém achei mto emocionante esta passagem e, parabéns , minha irmã vc está escrevendo maravilhosamente lindo.
ResponderExcluirEu tbém tenho dois quartos q chamo quartos de guardar,que tenho que sanear e nunca tenho tempo, ou tenho mil e uma prioridades que n limpar a bagunça que está entulhada nesses espaços.Mas acho que irei , qualquer dia desses sanear a coisa...
Às vezes é necessário tirar um tempinho para se livrar de coisas que não usamos, que não tem importância, que só ocupam lugar de coisas novas, ou que impedem o ar de circular na nossa vida. Adorei o jantar, obrigada pelo carinho. Nos encontramos no café na próxima sexta. Bjinhos!
ExcluirGostaria de ter coragem para fazer isso com as minhas tralhas, acho que nunca conseguirei. "inúmeros carregadores de telemóveis inexistentes", a portuguesa visitando Garanhuns (kkk). A trilha sonora desse post:http://www.youtube.com/watch?v=l7cog6KBVBo
ResponderExcluirBjin!
Ed, incrível como tu percebes as coisas! Fiquei horas cantarolando: "eu hoje joguei tanta coisa foraaaa..." É, às vezes eu escorrego no português, mas, é só na escrita. Luiza é que ficou cheia de novos sons! Bjinhos!
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