quarta-feira, 4 de julho de 2012

Arrumação


Pronto. Então, já completam duas semanas que estamos cá, e eu com a impressão que o tempo voltou a acelerar, os dias cinzentos de inverno são muito curtos. Mas nada me tira o prazer de reencontrar pessoas tão queridas. A seara de visitas começou oficialmente no primeiro sábado, após o primeiro impacto do burburinho da manhãs  sabatinas de Garanhuns. Fiquei atordoada com a muvuca colorida e ruidosa, tipicamente nordestina: gente de todo jeito, cachorros e pardais, carrinhos de milho cozido, frutas e churrasquinhos, ambulantes e moto-taxistas desleixados, trios de forró animando os fregueses nas sapatarias, locutores apregoando promoções. Um universo caótico, assombroso pelo descostume.   

 
Nos primeiros dias cuidei em dar um jeitinho no “quarto da frente”, onde armazenávamos papéis de um ano e sete meses. Honestamente, os papéis se acumulavam há bem mais tempo do que a decorrência da minha ausência física da nossa casa. Anos a fio guardei cópias de textos, transparências ultrapassadas, projetos de cursos já concluídos,  num apego insano a objetos que guardava com a promessa nunca cumprida de um dia precisar deste ou daquele traste. Juntei uma caixa grande de lixo tecnológico – inúmeros carregadores de telemóveis inexistentes, um videocassete, um meu primeiro portátil sem conserto, uma sombrinha vermelha com patinhos de Luiza quando era pequenina, um guarda-chuvas velho, retorcido pelos ventos - finalmente decidi por arrancá-los de dentro da minha casa, pois, se já vivi quase dois anos sem ao menos me lembrar que eles existiam, por que continuar a cultivar essa lavoura improdutiva? Juntei as sobras de 6 anos de eventos promovidos por Tony, e fiz a festa dos agentes do meio ambiente, que felizes disputavam participação no inesperado espólio exposto no passeio, antecipando-se ao camião do lixo.

 
No meio da arrumação encontrei fotos antigas, fotos de que não me lembrava e fotos que não conhecia. Livros há muito tempo lidos, manuais muito manuseados. Juntei a esses três ou quatro volumes importados nas duas malas em que apertamos nossas coisas. Para não me apartar de Portugal, carreguei dois ‘Saramagos’, um romance sobre Pedro e Inês de Castro. E Mia Couto, o meu novo amor luso-moçambicano. Novidades para arejar antiguidades. Encontrei também inúmeros Cds. Uns identificados, outros de conteúdo não sabido. Muitos foram para o lixo, alguns não interessava o conteúdo, um dia já foram importantes, não lembro quando deixaram de ser. Outros não rodavam mais, danificados pelo tempo. Encontrei receitas de bolo que nunca fiz, cadernos de versos que um dia escrevi. E cartas, muitas cartas de amor para um único homem. Elas foram minhas quando as escrevi, passaram a ser dele. E agora, são nossas. Com algumas, demos risadas, divertidos após duas décadas. De outras, me perguntei o que era que eu estava a viver quando as escrevi. Outras ainda desacreditei que as escrevi. São anos de palavras tecidas em finos papéis amarelados pelo tempo. Me esforço para lembrar como eram meus dias antes dele, mas nem sei se eles realmente existiram.  

 
A arrumação desencavou brinquedos quebrados, livros sem capa, mãos rabiscadas sobre a teoria em diplomas legais e Vade Mecuns. Achei os livros criados no maternal. Numa das páginas, havia uma pegada da minha pequena estampada em verde vibrante. Lembrei-me de uma titulação in memmoriam que tivemos na FAGA, quando a mãe chamada à tribuna, desenrolou um lenço amarelado pelo tempo com a marca do pezinho do filho perdido. Nem que eu viva cem anos, jamais esquecerei aquele tributo do maior amor do mundo. É possível descartar muitos objetos, porém, alguns se tornam o única prova material do que já é indelével na memória. Guardei rabiscos, desenhos, bilhetes e composições. Estes são do acervo da minha biblioteca afetiva.

 
Para partilhar objetos sem uso, dispomos no passeio uma estante, que rapidamente foi recolhida por um vizinho, no melhor modelo de vivência comunitária: o que não nos é mais necessário, pode servir a outros, sem que necessariamente se obtenha um lucro financeiro. Não temos o costume de vender coisas, o que não é mais util é repassado para outra pessoa, de coração aberto, para que os objetos sejam bem aproveitados e atenda as necessidades de quem recebe. De quebra, ganhamos espaço, seja para ocupar com o novo objeto novo, ou simplesmente deixar o ar circular melhor, faxinando a casa e a alma.

 

 
Até amanhã, fiquem com Deus.

6 comentários:

  1. Lindo texto, Anninha. A pegada do menino estampada no lenço que a senhora apresentou na cerimônia da FAGA me arrancou lágrimas dos olhos, lindo e triste ao mesmo tempo. Adoro seus pensamentos e reflexões. Beijos.

    ResponderExcluir
  2. Tbém achei mto emocionante esta passagem e, parabéns , minha irmã vc está escrevendo maravilhosamente lindo.
    Eu tbém tenho dois quartos q chamo quartos de guardar,que tenho que sanear e nunca tenho tempo, ou tenho mil e uma prioridades que n limpar a bagunça que está entulhada nesses espaços.Mas acho que irei , qualquer dia desses sanear a coisa...

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Às vezes é necessário tirar um tempinho para se livrar de coisas que não usamos, que não tem importância, que só ocupam lugar de coisas novas, ou que impedem o ar de circular na nossa vida. Adorei o jantar, obrigada pelo carinho. Nos encontramos no café na próxima sexta. Bjinhos!

      Excluir
  3. Gostaria de ter coragem para fazer isso com as minhas tralhas, acho que nunca conseguirei. "inúmeros carregadores de telemóveis inexistentes", a portuguesa visitando Garanhuns (kkk). A trilha sonora desse post:http://www.youtube.com/watch?v=l7cog6KBVBo

    Bjin!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Ed, incrível como tu percebes as coisas! Fiquei horas cantarolando: "eu hoje joguei tanta coisa foraaaa..." É, às vezes eu escorrego no português, mas, é só na escrita. Luiza é que ficou cheia de novos sons! Bjinhos!

      Excluir