domingo, 25 de agosto de 2013

Leituras e reflexões: Quando Lisboa tremeu

Apesar de ser domingo, acordei cedo. Tony já andava por dentro da casa, enquanto fazia o café, assistia a um tape dum jogo do Sport. Não entendo como alguém pode interessar-se por um jogo, principalmente quando já se sabe do resultado. Sendo honesta, sei muito bem. Ainda continuo com aquela mania de assistir filmes pela metade. É mais ou menos a mesma coisa. Contudo, acordei-me cedo por causa do vento que batia nas janelas antes das oito, num dia de céu cinzento e cheio de compromissos domésticos. O vento sul apanha-nos na janela dos quartos e zumbe nos nossos ouvidos pelas frestas das vidraças tropicais. Como diriam os nossos matutos, "mal comparando", acordei-me pelo vento, como ocorria constantemente lá nas Beiras.

Logo que cheguei a Portugal, ganhei o hábito de zanzar pelas livrarias. Já na primeira semana em terras lusitanas, Dayse me falou desse que foi o maior desastre natural que se tem notícias na terra de Camões. Inclusive, na religião dela, esse fato é um marco de um momento específico na história da humanidade. Não guardei muito bem, mas é algo relacionado ao apocalipse. O terramoto de 1755 marcou Lisboa para sempre, e talvez, tenha sido realmente um pequeno lembrete de Deus para que os humanos procurem bem o seu lugar.

Apesar dessas interfaces religiosas, nas mãos de Domingos Amaral o fato histórico resultou num romance apaixonante. Brilhantemente, o autor dividiu a narrativa em quatro partes: Terra, Água, Fogo e Ar. No primeiro, constrói o cenário do grande tremor e dos tremores secundários. Como o sinistro ocorreu na manhã do Dia de Todos os Santos, boa parte da sociedade lisboeta se encontrava a caminho ou já nas Igrejas. Muita gente pereceu sob as lages da casa de Deus. Na Lisboa antiga, não ficou nenhuma Igreja de pé. E para aqueles que acreditavam que o terremoto era um castigo de Deus, todas a Igrejas ruíram, mas a rua das meretrizes não sofreu um só abalo. Em 1755, Deus tinha um senso de humor invejável. Todas as Igrejas ruiram, inclusive "o Carmo e a Trindade". Por isso, quando os acontecimentos se precipitam ou estamos assoberbados de tarefas, os portugueses dizem que "desabou o Carmo e a Trindade". Parte da cidade sucumbiu ao grande tremor, mas as grades das prisões da Santa Inquisição também se abriram e os presos em nome de deus ganham a liberdade. Entre eles, a jovem Margarida, uma noviça acusada de bruxaria, que seria enforcada no Terreiro do Paço na manhã seguinte. O inesperado salva-lhe a vida, mas empurra-a aos desafios da sobrevivência numa cidade destruída, dominada pela morte.

Em seguida, no capítulo "Água", descreve o tsunami ocorrido na barra do Tejo. E é com esse fenômeno que o pirata Santamaria e seu fiel companheiro Muhamed fogem do navio em que estavam presos como traidores da pátria. Impressionante a narrativa do autor na construção dos cenários da tsunami, que, segundo registros históricos arrastou o que encontrava pela frente do atual Cais Sodré (na época, Remolares) até o Rossio. Quando todos acreditavam que já haviam vivido desgraças suficientes, vieram os grandes incêndios. O capítulo "fogo", narra os grandes incêndios decorrentes dos desmoronamentos,  destacando o horror da consumição do Hospital que existia onde atualmente é a Praça da Figueira, com os doentes e equipe médica presa nas chamas. No capítulo "Ar", conclui-se a saga de Santamaria e o reencontro com o seu passado, alinhavado pela determinação implacável do menino Felipe e o seu cão, em busca da irmã soterrada em casa pelo primeiro tremor.

No desenrolar da ficção, reencontramos uma personagem conhecida dos nossos livros de história. Sebastião José de Carvalho e Melo pode não ser um nome lembrado, mas, todos que passamos pela quinta, sexta série conhecemos o Marquês de Pombal. Apesar ter um passado nada recomendável e dos métodos pouco ortodoxos de administrar a crise, o Carvalhão, retratado por Domingos Amaral deu show de saber controlar os fatos negativos e reconstruir uma cidade literalmente das cinzas e escombros. Enquanto o Rei  D. José se encolhia num canto da Real Barraca (esse fato é engraçado: o rei ficou com tanto medo do terremoto que nunca mais habitou em palácios de alvenaria. Mandou construir uma casa de madeira, a qual o povo deu a alcunha de "real barraca". O sutil senso de humor do português é ótimo!), o marquês reconstruiu a cidade, projetando-a da  maneira que conhecemos hoje. 

Como veem, adoro romances históricos. Neste, Domingos Amaral consegue construir personagens fascinantes, como a Irmã Margarida, a Irmã Alice e o pirata Santamaria. Fundamentado em fontes documentais da época, ele destaca já na nota do  autor: " Os factos deste livro são baseados num acontecimento real. Portanto, qualquer semelhança com a realidade, não é, pois, coincidência. A intenção é mesmo essa." E o autor nos confunde tanto, que desperta-nos o desejo de buscar mais fontes sobre o caso. Outro dia, entramos na Casa das Bifanas, para tomar café, e lá há um imenso painel sobre a história do lugar. Parte desse painel mostra uma planta baixa do antigo hospital que queimou nos acontecimentos de 1755. Os portugueses sabem, como poucos, manter viva a sua história. 

Despertada pelo excelente livro do Domingos Amaral, fiz algumas leituras complementares, e quando minha sogra chegou a Lisboa, dispensamos os guias. Havia muitas histórias para contar, a partir dessas leituras. Talvez eu tenha tornado história o que foi na imaginação do autor!
Até amanhã, fiquem com Deus.

Um comentário:

  1. Li o livro e até fiquei triste quando terminou,os bons livros causam essa vontade de que a história se prolongue um pouco mais. Acho que o autor deveria fazer a continuação, queria que a Margarida casasse com o Santamaria e vivessem felizes para sempre. Adorei! Beijos.

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