Na verdade, ainda ando queimando gordura das leituras que fiz enquanto vivia no hemisfério norte. Logicamente, leio todos os dias. Mas, com reduzida verocidade. Assim me disse o senhor doutor meu orientador: a dedicação exclusiva no doutoramento serve para acumular experiência e bagagem de leitura que será consumida aos poucos. Já tenho encontrado minha rotina cotidiana, mas ainda não sei se gosto. Não quero viver como um hamster na gaiola, nem tenho natureza para viver aprisionada. Quando tudo o mais torna-se em obrigação, já não me encanta. Me cansa essa coisa de "tenho de ir", "tenho que fazer". O melhor é fazer o que se deseja, embora nem sempre seja possível. Algumas obrigações são indispensáveis como lavar os dentes. E na minha singela opinião ir à Igreja, ao salão de beleza, visitar amigos e ir na casa da sogra não combina com obrigação. Vou quando quero, e essa é a minha margem de manobra, o meu espaço de autonomia, necessário para enfrentar os inúmeros indispensáveis da vida. Não é à toa que Jorge Amado, em Seara Vermelha, colocou na boca do personagem o dito: "triste que só a obrigação, ruim que só a palavra do não".
Para mim, um dos maiores prazeres da vida é ler sem obrigação. Texto técnico, por mais substancial que seja é obrigação, e por si só já me faz ficar olhando o final para ver o quanto falta. Isabel Alarcão classifica essas leituras sem obrigatoriedade como "leituras de lazer". Um das alternativas para se distrair aprendendo, ampliando, vivendo outras vidas. Talvez por isso penso tanto antes de comprar um objeto de casa, uma roupa ou uma bolsa. Já com livros, só titubeio quando o dinheiro é pouco e o mês é longo. Contudo, na primeira oportunidade, a obra vem comigo para casa. Prefiro livros aos sapatos. O limite é a formação da fila: não se pode ter mais que cinco livros na espera. Além da conta dos dedos da mão é caso para tratamento psiquiátrico.
Li dois capítulos deste livro na Bertrand do Forum de Aveiro. Em sábados seguidos, ia a mesma prateleira, pegava o livro e continuava a leitura roubada. Num daqueles finais de semana, Luiza deu-me uma bronca: "eita, mãe, este livro, de novo?! O 'homem' da livraria vai reclamar com tu!" Uma reprimenda sem apelação. Comprei, nem me lembro mais como. E li o livro nos cafés de Aveiro, naquele horário intermediário, entre ser estudante de doutoramento e ser mãe. Chama atenção a epígrafe do livro. Mia Couto trás Mário Quintana na primeira página: "A imaginação é a memória que enlouqueceu". E, como José Saramago, quando lemos a epígrafe do livro, sabemos o rumo que a história irá tomar. Ao final do livro, a citação se torna óbvia e indispensável, combinação perfeita como feijão com arroz. O romance é a história de um médico português em exercício na África. Os imensos e inevitáveis choques culturais, tão em moda no Brasil, são a linha que costura o enredo. A história rodeia o cotidiano da doença de Bartolomeu Sozinho e de Dona Munda, a esposa que cuida do doente anos a fio. Dona Munda é uma personagem incrível,digna de tela de cinema. À primeira página, o autor a define: "não desperdiça palavra, nem despende sorriso." (p. 9) E prossegue, descrevendo o encontrodo médico com a esposa do moribundo:
"É o visitante quem arredonda o momento, inquirindo:
- Então, o nosso Bartolomeu está bom?
- Está bom para seguir deitado, de vela e missal..."
Impossível não perceber como os moçambicanos são tão parecidos conosco. Essa resposta era digna de meu sogro, ou do pai de Gláucio Costa. É a autenticidade do povo do interior que salta aos olhos e nos faz tão semelhantes, africanos e nordestinos do Brasil. Não deve ser por mera coincidência que um continente se encaixa perfeitamente no flanco do outro. Somos os mesmos, separados pelos caprichos do Atlântico. Sidónio Rosa, o médico português vai à Moçambique pelo seu amor a mulata Deolinda, filha de Bartolomeu Sozinho. E cuidar do doente e seus achaques de velhice é a maneira que encontra de permanecer perto de sua amada.Refletindo sobre o livro, percebo que o autor constrói o enredo sobre uma intrincada teia de mentiras e meias verdades. Ao longo da leitura, não conseguimos definir de quem é a verdade, numa história feia e cruel. Será o Sidónio Rosa realmente médico? Será a Deolinda mesmo filha do casal? E no final, nos questionamos se a verdade realmente existe. De tão longa imaginação, a mentira passa a ser verdade quando acredita-se nela, para além da exaustiva repetição. As interpretações da realidade depende do olho de quem ver, e a imaginação é o que faz adivinhar a beleza desgastada de Dona Munda e o misterioso sumiço de Deolinda.
A história é sempre de quem conta. E nisso, Carlinhos Brown é que tem razão: 'os livros não são sinceros". Em Venenos de deus, remédios do diabo, Mia Couto não constrói heróis, porque, de alguma maneira, a seu modo e em algum momento, todos mentem. E já diria o próprio Mário Quintana: "A mentira é uma verdade que esqueceu de acontecer."
Vou levar o livro para Ilma, e depois, provavelmente, Pablo vai querer ler. Assim, de mão em mão, transmito a minha paixão pela literatura africana de expressão lusófona. Lírica como o vento morno e perfumado das árvores em flor que entre porta a dentro pela minha cozinha.
Até amanhã, fiquem com Deus.
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