domingo, 13 de outubro de 2013

"Malassombro"

Nestes últimos dias, andei visitando com uma certa assiduidade o Cemitério de São Miguel. Sempre que deixava Izabel e Mariana em casa, Tony pegava a rua do Bacalhau (célebre torcedor do Santa Cruz) e dava uma passadinha no portão do "campo santo" para acompanhar as obras de recuperação do cemitério, que recebeu nos finais do mês passado os restos mortais de Dominguinhos. Além da curiosidade, acompanhar o trabalho de André Vagalume é mesmo uma diversão. Ele passou semanas arranjando túmulos, cavoucando jardins, resolvendo impasses paisagísticos da última morada dos garanhuenses. Eu sempre andei muito por estes caminhos, pois, quando mamãe vinha zelar o túmulo de papai, me trazia junto. Conseguia chegar ao túmulo de olhos fechados, de tantas vezes que vinha. Mas, depois da expansão, quando retiraram o muro, ficou difícil encontrar. Ainda mais com a especulação "imobiliária". Todos os dias surgem novos túmulos e para  transitar entre as campas é necessário pular sobre os canteiros e agarrar-se nas lajes e cruzes. Coisa horrível esta ocupação desordenada e sem planejamento. Nem com os mortos, nosso povo se organiza.  Nunca Muita gente tem medo de cemitério. Eu nunca tive, talvez porque sempre ouvi minha mãe repetir que deve-se ter medo dos vivos. Quem morreu, finou-se. E é verdade. Os vivos e sua mobilidade excessiva, que não respeitam o descanso alheio. Pois, já arrancaram uma das arvorezinhas que ornamentam o túmulo do nosso cantor mais ilustre, levaram até as pedrinhas de jardim. O povo é mesmo miserável. 

Na doutrina espírita acredita-se que o espírito desprende-se da matéria quando ocorre o "desencarne". Daí, quando a alma é comportada, segue para tratamento do espírito em colônias. Quando o sujeito é meio carne de pescoço e resiste a nova realidade, a alma pode ficar neste plano, agarrada à matéria. Às vezes, eles conseguem ser percebidos, sentidos ou até mesmo vistos. Isso justifica a ocorrência dos mal assombros. Na nossa cultura são muitas as histórias sobre esses seres imateriais. Na minha infância as almas de outro mundo, espíritos obsessores ou até mesmo malignos são temas constantes de noites de chuva, quando o fornecimento de energia elétrica era interrompido e as sombras dançavam ao luz das velas. Lembro-me particularmente duma história que minha mãe contava que, não por mera coincidência, falava de uma festa na casa de uma família onde só tinham mulheres. E as jovens queriam dançar e não tinham parceiros. Daí, lá para meia-noite, bate à porta um senhor muito alinhado, de terno branco de linho e chapéu de panamá. Apresentava-se como tocador de rabeca, e tocava muito bem. Uma criança, que lutava com o sono avisava constantemente a avó, puxando a manga da camisa: "Vó, tocador tem pé de péia". A velha, animada com o forró, ralhava: "vai dormir, menino, deixe de besteira!" Quando deu certa hora, o homem foi ficando diferente e começou a feder a enxofre, e a uma certa altura "Pou!", deu um pipoco e explodiu em uma nuvem de enxofre e uma risada maligna de ouviu. Nunca mais as jovens procuraram danças com rapazes desconhecidos. 

Mas, duas histórias, eu gosto particularmente. A primeira, quem contava era Vó Gênia, avó de nossa amiga Eliane Faustino. Num dos aniversários de Dona Leu, ela contou-nos: "Os homens gostavam de ficar num bar a jogar baralho e tomar cachaça até tarde da noite. Um fulano, sempre conhecidos de um   tio do primo do irmão do vizinho de um parente já falecido (fica difícil de conferir a veracidade da história!),às horas mortas da madrugada neblinosa de Garanhuns, já com várias doses à mais na cabeça, montou-se no cavalo, decidindo ir para casa. No caminho do Arraial (atualmente o bairro de Heliópolis), nas proximidades da praça Souto Filho, quando passava por baixo de umas árvores muito frondosas, caiu-lhe algo na garupa. Ao mesmo tempo que o cavalo disparava na mais abalada carreira, ouvia-se o farfalhar de vestidos antigos, enquanto mãos geladas e finas agarrava-lhes a cintura. Quanto mais o homem apavorado tentava controlar o cavalo desesperado, mais o bicho corria por conta própria. Na altura do parque Euclides Dourado, o cavalo estacou e o homem sentiu um desapear da sua garupa. A mulher misteriosa ainda lhe sussurrou ao ouvido: "muito agradecida. Fazia muito tempo que lhe esperava para sair daquele lugar". Nem um rosto se viu, apenas a presença de uma mulher aprisionada nalguma viela da Garanhuns antiga. Não se sabe do homem depois dessa experiência transcendental. Penso que ele deve ter abandonado o baralho e tornado-se abstêmio.

A outra história, que eu adoro, é a de Salu. Quem contava era meu sogro, seu Oswaldo. Ele dizia que às horas desertas da madrugada, Salu seguia pela rua do cemitério, meio embriagado. Os amigos quando o avistaram, pularam para dentro do cemitério para pregar-lhe uma peça. Quando Salu trocava passos cambaleantes, um dos sujeitos afinou a voz e disse: "Saluuuu, queres ficar rico, Saluuuuu!" Salu, repentinamente curado da carraspana respondeu respeitoso: "Quero sim, alminha de Jesus! (os matutos trocavam o "l" por um "r" e pronunciavam "arminha"). A alminha respondeu: "Vaai dá o cu, Salu." Macho que é macho não perdoa, e Salu respondeu sem pestanejar: "Vai tu, 'arma' fresca da bobônica!" E seguiu resoluto o seu caminho de recém-curado da bebedeira pelo desacato de uma alminha cheia de ideias. Quantas vezes, Seu Oswaldo contava essa história, eu ria em todas elas. 

Se existem mal assombros, não sei. E nem quero muito saber, nem por curiosidade científica. Tony passou por uma experiência estranha. Quando namorávamos, ele vinha às altas horas (as almas de outro mundo apreciam as madrugadas!) subindo a Rua Dr. Jardim. Naquela época, ainda era possível andar a pé e sozinho, tarde da noite em Garanhuns. Hoje, não  é mais possível,  A violência urbana e a criminalidade não permitem. Daí, a história foi assim: Os atacadores do tênis do meu namorado desataram na subida da ladeira ladeada por antigos armazéns de café. Precavido, ele preferiu chegar-se junto dum poste para obter maior claridade. Quando olhou a sombra, projetava-se um sujeito agachado (ele, naturalmente) e uma outra sombra em pé. Quando voltou-se para ver quem era, certo que era um ladrão, não havia ninguém! À despeito dos sapatos mal amarrados, subiu a ladeira em desabalada carreira, rezando à todos os santos e anjos do firmamento. Segundo ele, o arrepio que percorreu-lhe o corpo dava a impressão de cabelos em pé. O pânico o fez correr ladeira acima, e só parou quando chegou à Santo Antonio, mais pálido que um papel. Relatou aos amigos a história e rapidamente outras surgiram. Aquele era o caminho que os antigos carros de boi, em féretros mal assombrados de vítimas da peste (varíola), no século XIX. Dizem até que, nas noites de muita neblina, ainda ouve-se o ranger das rodas de madeira, ladeira abaixo, a caminho do poço da folha.

Hoje, vou dormir de luz acesa!

Até amanhã, fiquem com Deus.


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