Neste sábado, me atrasei. Acordei ao som dos carros que percorriam a via. Na esquina, há um bueiro cuja tampa vibra à passagem dos automóveis apressados. Um olhar de lado e visualizei a hora no escuro. 11:11. Despertei num pulo, para no segundo seguinte me lembrar que hoje é sábado, e por isso, não há pressa para a escola. Como diria Mariana, dormi até o fim, e só levantei-me quando Luiza me disse "mãe, tô com fome!" com uma voz estremunhada de sono à guisa de bom dia. Abri a janela para o céu nublado de fevereiro. Acostumo-me muito facilmente aos dias de sol, e o retorno a todos os tons de cinza do céu aveirense, influencia-me profundamente o humor. Estamos prontas para mais um dia neste mundo em que até o Papa 'pede para sair' da tropa de elite da esfacelada Igreja Católica e meteoritos riscam o céu em carreiras de fogo. Alguns até disfarçam, mas lê-se nas entrelinhas as saudades que sentem da Inquisição.
No setembro último, regressei à Portugal para os segundo tempo desta seara de formação. Na bagagem trouxe alguns livros. Entre eles, vieram comigo a Sônia Bridi e a Delanie Velasquez. Duas experiências de leitura diferentes acerca do mesmo tema: as condições que criamos para viver (ou sobreviver) neste mundo-cão. Outro dia, li em algum lugar que o problema do planeta são os inquilinos. E as autoras dessas duas obras lançam-nos a reflexão sobre nosso way of life de modos diferentes, mas, complementares.
Comprei o livro da Sônia Bridi quase que compulsoriamente. Como fui convidada para discutir a obra na Bienal do Livro de Garanhuns, vi-me na obrigação de, ao menos, conhecer a obra, já que a autora e a série já conhecia das reportagens da Globo e das matérias veiculadas no Fantástico. Depois de alguma confusão, Tony (o ambientalista cético!) me trouxe o livro no dia da discussão. Ainda houve tempo de ler dois ou três capítulos para ter embasamento suficiente para dizer duas palavras sobre a obra. O livro, editado pela Editora Globo é uma obra de presença. Capa dura, fotografias lindísismas de algumas das locações onde foram feitas as reportagens da série "Terra, que tempo é esse?", um DVD com as reportagens. O texto da Bridi, conforme conhecemos da televisão é ágil e muito bem fundamentado. O livro nos supreende por nos mostrar um outro lado da vida da dupla de jornalistas: a moça tem o luxo de ter o marido, Paulo Zero, como cinegrafista. Por sinal, um excelente cinegrafista. A harmonia do casal é perceptível até mesmo nas reportagens de televisão, onde o texto encaixa perfeitamente com a imagem. O Tony Lucas, fã da jornalista, já havia me dito que o texto dela é afiadíssimo. Comprovei-o em "Diário do clima", um livro de histórias de viagem. A Bridi conta-nos de forma bem humorada, os desafios de fazer uma série de reportagens sobre as mudanças climaticas em todo o mundo. E nos mostra as dificuldades do cotidiano de quem tem que viajar com 20 quilos de equipamentos, a espera nos aeroportos, as incoveniências dos hotéis, as adaptações à comida de cada sítio, os riscos físicos e políticos que oferecem conjunturas sociais conflituosas. Um dos capítulos mais engraçados - e interessantes -, decorre em Veneza, onde a dupla vai conhecer as obras do Projeto Moses. Este projeto visa proteger a cidade mais romântica do mundo do avanço das águas do Mar Adriático. Como a cidade já vive dentro da água e esse é o seu glamour, o aumento do nível do mar é uma morte anunciada. Nas épocas de Acqua Alta, as águas invadem os casarões às margens dos canais e a Piazza de San Marco lembra uma palafita. Foi neste capítulo que aprendi que com dinheiro e vontade política, a engenharia resolve qualquer problema. Para além das questões ambientais, o livro é uma reflexão sobre a vida que escolhemos ter. A escalada ao Kilimanjaro exigiu da dupla de jornalistas muitos sacrifícios para alcançar o preparo físico indispensável para essa empreitada. Contando os passos até atingir o cume, Bridi nos presenteia com a reflexão:
" Penso em investigar mentalmente o que e fez impor, a mim mesma este sacrifício físico, mas logo desisto. Análise, não! Penso nos dias difícies que virão agora, e que não são nada se comparados à jornada que uma grande amiga está enfrentando, sem escolha. Diagnosticada com um câncer muito agressivo, passa por um tratamento doloroso. Queria estar perto dela, mas não posso parar um projeto que insisti tanto para se realizar. Penso que se eu fosse religiosa, poderia rezar por ela. Ela é muito religiosa, ia gostar. Lembro da minha mãe dizendo que a oração é ouvida por Deus, mesmo que quem esteja orando se sinta falando sozinho (...) e tomo uma decisão: se eu rezar, vai fazer a diferença para quem recebe a oração." (p. 167)
E na época que lia isso, me identifiquei por conta da insignificância desse desafio que impus a mim mesma, diante da batalha não opcional do Primo Clodoaldo, que luta pela vida a cada dia. Cada um com o seu Kilimanjaro. A natureza ensina, a vida nos ensina, as pessoas nos ensinam. Basta estarmos atentos às suas lições.
O outro livro também fala sobre esse nosso mundo. Delanie Velasquez é uma escritora iniciante. Diferente da Bridi, a Velasquez publicou em produção independente. Não tem o apoio empresarial de uma grande editora. A divulgação de seu primeiro livro é feita por ela mesma, acompanhada da família, de feira em feira, divulgando a sua obra. Faz palestras, promove workshops sobre qualidade de vida. Mestre em fisiologia, demonstra na obra um conhecimento técnico apurado, e um senso de imaginação para descrever uma catástrofe natural e uma epidemia de uma doença misteriosa que assola o nosso planeta no ano de 2016. Este é o pano de fundo para propor uma reflexão sobre o uso excessivo das tecnologias e os males que causamos a nossa saúde devido ao estilo de vida que adotamos. Nestes nossos dias, onde tudo é efemero, ou nas palavras de Marx "tudo que é sólido, desfaz-se no ar", o que temos hoje rapidamente torna-se passado. Além disso, Delanie provoca o leitor a refletir acerca das teorias explicativas sobre o surgimento do homem e da tecnologia. Mais que uma discussão acadêmica, tem um leve toque teológico, em que conseguimos perceber sutilmente os valores da autora.
São dois livros sobre o mesmo tema, li-os seguidamente. São obras complementares, embora um seja reflexões da realidade que nos povoa neste mundo, e o outro, seja uma ficção do vir a ser'. Ambos tem sua riqueza literária, que nos conduzem a repensar se "somos o que pensamos" ou "somos o que fazemos." E isso reflete no mundo que constantemente [re] construímos.
Até amanhã, fiquem com Deus.
Querida Amiga, que bom que pode comprovar o que falei com relação ao texto de Miss Bridi. o livro é delicioso, principalmente para quem é do meio e sabe o sacrifício que é, poder transformar o pensamento em imagens. lendo, nós é que transformamos. muito bom ! beijo volte breve, os Tony´s agradecem!
ResponderExcluirTodos sabemos do seu bom gosto, Tony Lucas. Por isso, sua generosidade nos é tão cara, amigo. Beijos!
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